domingo, 14 de setembro de 2025

Faça Boas Arbitragens

(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em junho de 2022)

Travis Miller comenta sobre o que ele leva em consideração para a realização de boas arbitragens...

Decisões arbitrárias são uma das críticas falsas mais comuns à mentalidade de “Arbitragens, não regras” [Rulings, not rules].

Já joguei alguns dos meus jogos favoritos com árbitros que tomaram más decisões por capricho. Foi horrível.

Esse não era um problema das regras ou do jogo. O problema não eram os jogos “old school”. O problema eram julgamentos aleatórios, arbitrários e caprichosos feitos durante a condução de um jogo “old school”.

Todos os jogos de interpretação exigem arbitragens. Nenhum jogo de interpretação pode eliminar arbitragens [2]. Nenhum conjunto de regras consegue cobrir todas as situações. A menos que o seu conjunto de regras proíba estritamente fazer qualquer coisa que não esteja descrita nelas, o árbitro terá que tonar uma decisão mais cedo ou mais tarde.

Já vi muitas más arbitragens sendo realizadas em jogos usando diversos sistemas. Novos. Antigos. Regras leves. Regras pesadas. Ficção em primeiro lugar. Simulações rigorosas. Jogos “cinematográficos”. Não importava em qual categoria de RPG estávamos jogando. Todos exigem uma arbitragem. Um árbitro fazendo um mau julgamento é simplesmente... ruim.

Jogos clássicos de aventura tendem a exigir mais arbitragens do que outros tipos de jogos. Como pouquíssimos livros de jogo ensinam a fazer arbitragens, muitos mestres de jogo realmente são péssimos nisso.

Neste ensaio, vou esclarecer por que boas decisões não são arbitrárias e oferecer algumas sugestões sobre como fazer uma boa arbitragem.

O que faz uma boa arbitragem depende do contexto, mas existem princípios básicos que você pode ter em mente.

Bons árbitros não tomam decisões arbitrárias.

Às vezes você precisa seguir a intuição e decidir com base em um sentimento. Sentimento é um mau modo padrão.

Ter um processo o qual você aplica em sua mente produz resultados melhores.

Árbitros habilidosos tomam decisões com base em um ou mais dos seguintes elementos. Eles não estão em ordem específica. Um critério pode ser mais importante em um jogo, menos em outro.

  • Convenções de gênero das inspirações literárias do jogo
  • Regras, procedimentos e mecanismos de dados existentes
  • Costume e cultura do grupo de jogo
  • Conhecimento sobre o cenário do jogo
  • Conhecimento geral sobre o nosso mundo
  • Bom senso

Convenções de Gênero

Todo jogo de interpretação que já joguei teve algum tipo de gênero literário que o precedeu. Existiam histórias de fantasia antes de D&D [3]. Cyberpunk 2020 foi baseado nas histórias de William Gibson e Philip K. Dick. Call of Cthulhu é baseado no horror de H. P. Lovecraft e de seus contemporâneos. Essas histórias têm convenções de gênero definidoras que você pode usar para tomar decisões.

Se estou mestrando um jogo de horror baseado em filmes de slasher, o carro que o personagem do jogador tenta usar para escapar terá a bateria descarregada. Um machado de duas lâminas ou uma motosserra que liga com uma única puxada estará no porta-malas desse carro. Essas arbitragens se encaixam nas convenções do gênero.

Para melhorar a qualidade das arbitragens baseadas em gênero, familiarize-se com esse gênero. Simples.

Mas tenha cuidado se estiver conduzindo um jogo em que diferentes gêneros se sobrepõem. Se você está mestrando um jogo de espionagem ambientado na Guerra Fria, deixe claro para os jogadores se você está fazendo um jogo no estilo James Bond ou algo que se aproxime de espiões reais. São coisas diferentes. As convenções de gênero de James Bond não são as mesmas de Identidade Bourne.

Regras, procedimentos e mecânica de dados existentes

A primeira seção após a introdução no Dungeon Masters Guide de Advanced Dungeons & Dragons, de Gary Gygax, fala sobre o uso de dados. Gary sabia muito bem que fazer arbitragens era parte necessária de ser um bom Mestre de Jogo. O kit de ferramentas do MJ inclui regras e dados. Saber como funciona a probabilidade dos dados é uma ferramenta útil quando não existe uma regra para a ação que o jogador quer realizar.

Você faz um palpite científico e bem fundamentado sobre a probabilidade de um personagem conseguir realizar aquilo que está tentando e escolhe uma mecânica de dados apropriado. Bastante direto.

Aprender o básico de probabilidade de dados, talvez imprimir tabelas e mantê-las em uma pasta de referência, seria um bom começo. Ler outros sistemas de jogo e entender como funcionam também ajuda. Ninguém se importa se você usa um mecanismo de dados de outro jogo, desde que o resultado seja satisfatório [4].


Costume e cultura do grupo de jogo

Como qualquer grupo social, o seu grupo de jogo desenvolverá uma cultura ao longo do tempo. Você faz uma arbitragem e ela se torna uma regra caseira. Em uma situação semelhante, você aplica a mesma decisão ou uma parecida. Se você joga múltiplos jogos, surgirão costumes em torno de como discutir questões de regras ou de arbitragens. O seu grupo pode não resolver a mesma questão da mesma forma que outro grupo.

Personalidades, preferências e dinâmicas dos relacionamentos afetam toda a cultura de um grupo.


Conhecimento sobre o cenário do jogo

Isso pode ser importante ou relativamente insignificante, dependendo do jogo e do cenário em que você joga.

Jogos como Amber Diceless Roleplay exigem um nível relativamente alto de conhecimento sobre o cenário. Você não pode mestrar ou jogar esse jogo sem conhecer os livros de Amber, de Zelazny.

Se você estiver jogando um jogo baseado em disputas de sangue na Islândia do século X, precisará saber sobre os vikings, o Althing e as grandes sagas.

Se você estiver criando seu próprio cenário, então pode inventar conforme avança e se safar disso.

Conhecimento geral sobre o nosso mundo

De forma geral, é sábio ser um aprendiz para a vida toda. Leia e assista a materiais educativos em diversos domínios. Isso ajuda a desenvolver sua compreensão de si mesmo, do que está acontecendo ao seu redor e de como navegar em um mundo confuso e incerto. Isso se aplica à aplicação de arbitragens.

A improvisação de um mestre de jogo, a construção de mundos e de aventuras são beneficiadas pela prática da leitura. Você criará uma biblioteca de analogias em sua mente. Elas podem ser usadas quando surgir uma situação incomum em seus jogos.

Siga sua curiosidade. Não há necessidade de tornar o aprendizado autodidata uma experiência tediosa e miserável. Leia o que lhe interessa. Leia ensaios, poemas, romances. Não importa. O importante é que você leia.

Carregue um livro, um leitor digital ou instale um aplicativo de leitura no seu celular. Em vez de rolar o feed de redes sociais, leia um poema.


Bom senso

Faça arbitragens com base na experiência de vida. Se você sabe que não há chance do mago magricela conseguir fazer aquele salto, diga isso.


Uma série de boas perguntas

Uma decisão é construída sobre uma série de perguntas. As regras e mecanismos do jogo são ferramentas usadas para responder a uma pergunta [4]. O verme púrpura vai engolir inteiro o paladino imprudente? O ladrão consegue cortar a bolsa do mercador sem ser notado?

Quando você estiver fazendo uma arbitragem, comece pela pergunta que está sendo feita. Quando não tiver certeza de como encontrar a resposta, percorra a lista de critérios para uma boa arbitragem.

O que Amon Thoth faria?

A rolagem de busca por portas secretas se aplica a uma entrada de caverna escondida por vinhas crescidas demais?

Qual parece ser uma chance percentual razoável de o monstro escorregar na casca de banana?

Como normalmente resolvemos esse tipo de situação?

Quem os goblins odeiam mais no meu mundo de campanha? Orcs ou aventureiros?

Colabore com os jogadores

Há outras pessoas na mesa que podem contribuir para a sua arbitragem. Boas ideias podem vir de qualquer um. Todo mundo sabe algo que você não sabe.

Frequentemente pergunto aos meus jogadores o que eles acham que seria uma forma justa de resolver o resultado. Eles podem ter uma boa ideia. Se o resultado for negativo, o personagem encontrar o próprio destino será aceito com mais naturalidade.

O simples ato de perguntar pode gerar confiança e colaboração futura no grupo.


Revisão e Conclusão

Jogos que deixam muito espaço para o árbitro tomar decisões não são inerentemente falhos. A abordagem “Arbitragem, não regras” é apenas uma das muitas formas possíveis de um jogo ser projetado para resolver as questões dramáticas de uma partida. Jogos assim colocam muita confiança e responsabilidade nos ombros do árbitro.

Arbitragens de alta qualidade não são caprichos aleatórios.

Boas arbitragens são fundamentadas, refletidas e não estão 100% certas todas as vezes.

Você vai cometer erros. Ninguém é perfeito. E está tudo bem. Se você for honesto e sincero sobre os seus deslizes, seus amigos vão perdoar e esquecer.

Você vai melhorar com a prática. Fazer boas arbitragens é uma habilidade e, quanto mais você fizer isso, mais vai aprimorar. Observe e aprenda com seus erros. Espero que estas orientações ajudem.

∞ Travis Miller ∞

1. https://grumpywizard.home.blog/2023/06/22/make-good-rulings/
2. https://dustdigger.blogspot.com/2025/08/jogos-classicos-de-aventura-fantastica.html
3. https://grumpywizard.home.blog/2024/05/02/role-playing-games-do-not-emulate-genres/
4. https://dustdigger.blogspot.com/2025/08/a-questao-dramatica-e-mecanica-do-jogo.html

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