segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Sobre "A Masmorra como um Submundo Mítico"

(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em outubro de 2022)

"Equilíbrio dinâmico..."
[Isto foi originalmente postado como um comentário em um post no Reddit [2], mas, sabendo que desapareceria na memória em poucas horas, achei que valeria a pena preservar aqui também]

No D&D Original (1974), os conselhos e procedimentos para a criação de masmorras eram muito estranhos: as masmorras deviam ser infinitamente grandes e em constante mudança, cheias de uma mistura principalmente aleatória de monstros, tesouros, truques e armadilhas sem nenhuma razão ou justificativa particular. Havia até regras mais esquisitas, como a de que as portas estavam sempre emperradas para os aventureiros, mas nunca para os habitantes da masmorra, e que todos os habitantes da masmorra podiam enxergar no escuro, a menos que estivessem a serviço de um personagem jogador (PC), nesse caso, perdiam essa habilidade.

Na época do AD&D e dos primeiros módulos publicados pela TSR (em 1978), Gary Gygax já havia se afastado bastante desse modo de design, indo em direção a um estilo mais lógico e racional, que James Maliszewski mais tarde chamou de “naturalismo gygaxiano” [3] (embora isso seja algo equivocado, já que outros jogos, como RuneQuest e Chivalry & Sorcery, chegaram lá primeiro e se aprofundaram mais nesse estilo – Gary sempre manteve um pé em cada campo). O estilo anterior foi ridicularizado como “estilo casa de diversões” e desprezado, sendo em grande parte abandonado no início até meados dos anos 80 (The Abduction of Good King Despot [4], publicado em 1987, foi provavelmente o último suspiro desse estilo de aventura na Era Clássica). O que foi uma pena, pois esse tipo de jogo pode ser muito divertido, especialmente em comparação com o estilo excessivamente ecologizado, que pode ser seco e entediante (especialmente quando se esforça tanto para explicar e justificar seus elementos “fantásticos”, que acaba drenando o encanto e a maravilha deles).

Avançando cerca de 20 anos para o início do século XXI, alguns de nós estávamos tentando, em fóruns, reviver o legado desse estilo antigo, trazendo de volta mais do senso de diversão e aventura desenfreada que achávamos que havia se perdido e sido enterrado no D&D da 2ª e 3ª edições. Então voltamos ao material mais antigo (livros, fanzines e depoimentos de jogadores da primeira geração) e defendemos que o jogo ainda podia ser jogado dessa forma e seria tão ou mais divertido do que a outra abordagem. Mas esse esforço foi dificultado porque as pessoas continuavam insistindo na falta de lógica e realismo – declarando que tudo era arbitrário, bobo e simplista, e que não conseguiam suspender a descrença o suficiente para se divertir jogando em um ambiente assim.

Frustrados por estar sempre na defensiva e ter as mesmas discussões repetidas vezes, alguns de nós decidimos que valeria a pena criar uma justificativa retórica que fosse além das desculpas reducionistas como “é só um jogo, rs”. Eu estava lendo tanto o ciclo Dreamlands de Lovecraft quanto o livro O Herói de Mil Faces de Joseph Campbell na época e percebi que todos os elementos estranhos do estilo “casa de diversões” do D&D faziam sentido em um mundo de lógica de sonho e no contexto da jornada do herói mitológico; combinado com a noção já presente no lore de D&D de que quase todas as “masmorras casas de diversões” clássicas foram construídas e supervisionadas por um demiurgo hostil ou insano de estatura divina ou quase divina (Zagyg, Halaster, Zenopus, Keraptis, Acererak, Ignax o 27º, etc.), e tudo meio que se encaixou. Eu fui (acho, mas não tenho provas para sustentar isso) a primeira pessoa a articular a ideia da masmorra como um outro mundo mítico, que é especificamente contrário à lógica normal e às leis naturais que governam não apenas o nosso mundo, mas até mesmo as partes mundanas do mundo de fantasia (as cidades, os ermos e as "masmorras-covil" que operam sob os princípios do naturalismo gygaxiano); que entrar na masmorra é literalmente cruzar o limiar campbelliano para a aventura em um outro mundo mítico. De qualquer forma, um amigo meu chamado Jason Cone (que usa o pseudônimo de Philotomy Jurament) pegou essa ideia [n.t., Dungeon As A Mythic Underworld] e expandiu, formalizando-a em um ensaio que ele postou em seu blog por volta de 2005 [5].

Alguns anos depois, após a morte de Gygax, a mudança controversa e destruidora de vacas sagradas, para o D&D 4ª edição, e o lançamento de jogos “retroclone” sob a Licença de Jogo Aberto (OGL), como Labyrinth Lord, houve um súbito aumento de interesse nas formas mais antigas de D&D, com vários blogs (o Grognardia de Maliszewski entre os mais destacados) surgindo sobre o assunto e trazendo essas antigas discussões de fóruns para um novo e mais amplo público. Essas pessoas ficaram muito fascinadas com o ensaio de Philotomy sobre a Masmorra como Submundo Mítico, e ele se tornou algo como um texto fundamental para o nascente movimento OSR, ao lado do Quick Primer for Old School Gaming de Matt Finch [6] (que popularizou o conceito de “rullings, not rules” [“arbitragens, não regras”], que também cresceu a partir dessas mesmas discussões de fóruns). Entre esses dois ensaios, todas as coisas sobre o D&D dos anos 70 que haviam sido tão sumariamente descartadas como bobas, primitivas e quebradas nos anos 80 e 90 agora tinham uma justificativa retórica e filosófica de jogo suficiente para que as pessoas se sentissem liberadas para jogar dessa forma “old-school” e se divertirem sem ter que se sentir culpadas ou defensivas.

Mas agora, mais de uma dúzia de anos depois, tudo isso é história antiga. Os princípios de “rullings, not rules” e “Masmorra como Submundo Mítico” ["Dungeon As A Mythic Underworld"] tornaram-se dogmas da OSR, despojados de seu contexto e propósito original – ou seja, opor-se às tendências contrárias dominantes da época e justificar um estilo de jogo que havia sido denegrido e desprezado por décadas. O que se perdeu é que esses conceitos não foram propostos como a única ou melhor forma de jogar, mas como uma alternativa. Nunca tivemos a intenção de afirmar que regras são sempre ruins, ou que todas as masmorras devem ser submundos míticos e a lógica e ecologia normais nunca devem ser empregadas. Pelo contrário, um dos pontos originais da masmorra como submundo mítico é que ela é uma exceção à lógica fantástico-naturalista e à ecologia que governam o resto do mundo do jogo. Para mim, existe um equilíbrio ideal entre regras e julgamentos, entre lógica e simbolismo, entre realidade e sonhos, que Gygax, Jaquays, Stafford, Perrin e alguns outros instintivamente atingiram por volta de 1978-82, que ainda me fascina e inspira até hoje. O pêndulo balançou demais para um lado nos anos 80-90 e diminuiu essa magia, depois nossa tentativa de correção nos anos 2000 fez com que balançasse demais para o outro lado com a OSR nos anos 2010.

Então, se você sente [como o autor do post no Reddit ao qual isso foi uma resposta] que o conceito de Submundo Mítico está sendo usado em excesso e é muitas vezes usado como desculpa para um design preguiçoso ou descuidado, eu digo que você está certo, e digo isso como uma das primeiras pessoas a articular o conceito e inspirar o cara que o popularizou. Há um lugar para masmorras de lógica de sonho e não naturalistas, mas elas deveriam ser (pelo menos na minha opinião) um ingrediente relativamente menor em um ensopado naturalista gygaxiano, em vez de o único ingrediente na despensa.

∞ Trent Smith ∞

1. https://mystical-trash-heap.blogspot.com/2022/10/on-dungeon-as-mythic-underworld.html
2. https://www.reddit.com/r/osr/comments/y3206f/comment/is6jl5c/?context=3
3. https://dustdigger.blogspot.com/2024/09/naturalismo-gygaxiano.html
4. https://mystical-trash-heap.blogspot.com/2017/06/d-rescuing-good-king-despot.html
5. The Dungeon As A Mythic Underworld, Jason Cone [estamos tentando trazer este texto], encontra-se em meio a esses outros, de autoria do mesmo, mantidos por este blog: https://save.vs.totalpartykill.ca/grab-bag/philotomy/
6. Quick Primer for Old School Gaming, de Matthew Finch, traduzido pelo Café com Dungeon

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