(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em março de 2009)
Assim como o termo "old school" (antiga escola), tentar definir a mistura exata de ingredientes que faz Dungeons & Dragons ser Dungeons & Dragons é um assunto escorregadio, tão escorregadio, na verdade, que muitos há muito tempo se apressam em descartá-lo como um exercício inútil. Essa pressa tem sido ainda mais pronunciada no último ano. Entre a morte de Gary Gygax e o advento de um novo jogo reivindicando seu legado, houve muita discussão sobre esses tópicos e outros relacionados, sendo grande parte tristemente mal-informada, seja pela história ou pela lógica. Existe uma tendência natural nos seres humanos — nos jogadores em particular — de querer colocar ideias e conceitos em “caixinhas” mentais bem organizadas. Sou tão culpado disso quanto qualquer um, como leitores regulares deste blog podem atestar. É a mesma tendência que reduz discussões complexas a fórmulas simples ou vê listas como exaustivas, em vez de meros auxiliares à compreensão.
Algo semelhante aconteceu nos meses desde que escrevi a bem-recebida entrada intitulada "Naturalismo Gygaxiano" [2]. Não acho que estou me iludindo ao dizer que é um dos posts mais influentes que surgiram da comunidade de blogs da antiga escola. Muitas pessoas parecem ter se apegado à ideia que apresentei naquele post, incluindo pessoas cujos interesses e agendas são muito diferentes dos meus. Infelizmente, alguns reduziram minha postagem original a um mantra ou fórmula, vendo nela uma exaustividade que nunca pretendi. Em si, isso não é necessariamente uma coisa ruim, pois prefiro ver a adoção de uma interpretação literal do Naturalismo Gygaxiano do que sua rejeição total. O problema é que tal literalismo facilita muito para alguns rejeitarem o princípio ou argumentarem que ele é incoerente, da mesma forma que uma criança que foi ensinada que "todos os cisnes são brancos" ficaria perdida ao tentar explicar os cisnes negros da Austrália.
Embora naturalista, Gary Gygax também era — talvez preeminentemente — um fantasista: “Essas regras são estritamente fantasia… Aqueles cuja imaginação não conhece limites descobrirão que essas regras são a resposta às suas preces. Com este último conselho, convidamos você a continuar lendo e aproveitar um ‘mundo’ onde o fantástico é fato e a magia realmente funciona!” Não é preciso ser um estudioso atento para encontrar inúmeros exemplos em que o amor de Gygax pelo fantástico supera seu amor pelo natural. Para cada criatura cujo comportamento obedece a uma aproximação das leis naturais, há outra que existe completamente fora da Natureza. Para cada lugar onde o mundo implícito de D&D funciona de acordo com axiomas reconhecíveis, há outro lugar onde eles são desrespeitados.
As muitas exceções ao naturalismo encontradas no cânone de Gygax só ameaçam uma compreensão ingênua dele — uma compreensão fundamentada principalmente na contagem de exemplos de uma abordagem e na pesagem de contra-exemplos de outra. Suspeito que, se essa for a abordagem adotada, os exemplos explícitos de naturalismo seriam muito menos numerosos do que se poderia imaginar. Isso em parte porque as suposições subjacentes de D&D — as coisas que ele não menciona — são as do mundo real e natural. Gygax não se deu ao trabalho de falar sobre essas coisas, pois simplesmente assumiu sua veracidade, enquanto eventos e efeitos sobrenaturais precisavam de explicação específica. A fantasia Gygaxiana ocorre não em um mundo totalmente mágico, mas sim em um mundo natural ao qual a magia foi adicionada, razão pela qual a magia frequentemente recebe muito mais atenção em seus escritos.
Deixando isso de lado, o “antinaturalismo” Gygaxiano é, no entanto, um princípio igualmente importante do jogo. Folheie o Monster Manual e dê uma olhada nas criaturas que você encontra lá. Você quase certamente encontrará monstros, como demônios e diabos, que existem completamente fora de qualquer coisa que se assemelhe a uma ecologia terrestre e cujo comportamento não pode ser explicado de acordo com princípios “científicos”. Mais do que isso, no entanto, observe atentamente até mesmo muitas das criaturas “naturais” descritas naquele volume: dinossauros, veados irlandeses, linces gigantes com poder de fala, para citar apenas três. Nenhuma dessas criaturas é “monstruosa” no sentido usual do termo, mas todas estão amplamente fora da nossa experiência do mundo natural, sendo, ou retrocessos a eras pré-humanas ou modificações antinaturais de animais do mundo real. De fato, uma boa porcentagem das entradas do Monster Manual é composta por animais gigantes de vários tipos — exemplos pouco convincentes do compromisso de Gary com o naturalismo.
Mas por que tem que ser uma escolha entre um ou outro? Parte do apelo da visão de Gygax para Dungeons & Dragons é que ele rejeitou tanto o capricho de um mundo completamente mágico quanto evitou a banalidade da fantasia "realista". Seu gênio único estava em ser capaz de guiar o jogo entre esses dois extremos e para as águas emocionantes onde as duas abordagens existem em relativa harmonia, uma servindo à outra. Seria um erro, eu acho, negar que o naturalismo foi a fundação sobre a qual Gary construiu seu jogo, mas, ao mesmo tempo, isso nunca o impediu de construir edificações gloriosas da mais pura fantasia — a "sombria terra das fadas" dos Drow [3], a assustadora tumba do demi-liche [4], a fantasia de Dungeonland [5] — sobre essa fundação. Essa maravilhosa coincidência de opostos é talvez o maior de muitos presentes que Gary legou ao jogo que co-criou e incansavelmente promoveu durante sua vida. É seu legado mais verdadeiro e um que eu me esforcei muito para honrar.
∞ James Maliszewski ∞
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1. http://grognardia.blogspot.com/2009/03/gygaxian-unnaturalism.html
2. https://dustdigger.blogspot.com/2024/09/naturalismo-gygaxiano.html
3. http://grognardia.blogspot.com/2008/10/retrospective-vault-of-drow.html
4. http://grognardia.blogspot.com/2008/09/retrospective-tomb-of-horrors.html
5. http://grognardia.blogspot.com/2008/12/retrospective-dungeonland.html
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