(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em setembro de 2023)
"A resposta não está na sua ficha de personagem..." |
A história do design de RPG é marcada pela hipercorreção. As várias correntes e tendências que podem ser vagamente chamadas de “filosofia de design OSR” surgiram de uma série de princípios ou documentos, como, por exemplo, o Primer de Matt Finch [2], que codificou o conhecimento existente na época, com o objetivo de diferenciar o OSR do pano de fundo dos jogos contemporâneos. Embora documentos como este primer geralmente sejam robustos e cumpram seu propósito, eles foram criados para um público familiarizado com sistemas excessivamente mecanizados e complexos, como o sistema D20, com seus infinitos modificadores, talentos, habilidades de personagem, habilidades semelhantes a magias e itens. Com o tempo, o contexto da sabedoria original se perdeu, e os nativos ficaram imitando cegamente os movimentos anteriores. Como as tabelas aleatórias, o mantra se tornou um Culto à Carga. “A resposta não está na sua ficha de personagem" [3] é uma das piores distorções do pensamento OSR.
Em seu contexto original, quando comparado com algo como o sistema D20 ou mesmo o de 5ª edição, há alguma justificativa para isso. Os personagens de D&D da velha escola não possuem uma lista extensa de habilidades, talentos e capacidades, e, portanto, se o personagem quiser tentar uma ação, ele geralmente não precisa consultar sua ficha de personagem antes de fazê-lo. Você pode ouvir através de uma porta, acender uma fogueira ou preparar uma emboscada. O número de habilidades especializadas é relativamente pequeno, particularmente no caso de habilidades mentais e sociais. Mas, mesmo aqui, as seis habilidades do personagem tendem a determinar o sucesso relativo de muitas dessas atividades improvisadas. Forçar uma porta, correr por uma galeria cheia de lâminas oscilantes e interagir com o jogo usando as propriedades de seu alter ego fictício muitas vezes envolve consultar suas habilidades. Quando confrontado com um obstáculo como uma porta com ruídos de orcs atrás dela, espera-se que, em vez de olhar para seu grimório, você possa considerar colocar uma voz feminina de orc e ordenar que eles o ajudem, enquanto o resto do grupo aguarda em emboscada com espadas desembainhadas. A solução deve ser mais fluida, criativa e aberta, para diferenciá-la do estilo de “spamming” de habilidades de MMORPG/4ª edição.Apesar de certa falta de precisão na formulação, o princípio não é falso, no contexto extremamente limitado do jogo de níveis 1-3. Tendo adquirido experiência em jogos de nível mais alto, a verdade é que, à medida que seus personagens ganham acesso a magias, habilidades e uma série de itens mágicos, o uso inteligente desses recursos será cada vez mais decisivo para resolver muitos dos desafios que lhes são apresentados. Afinal, se eles não são necessários, por que você os teria? O estado final desejado de uma aventura de nível alto é aquele em que os personagens ainda usam sua inteligência (uso criativo do terreno, artimanhas, exploração eficiente, interrogatório de cativos, etc.), mas isso é complementado, em um grau cada vez maior, por desafios que exigem o uso de suas habilidades e itens. Se feito corretamente, tal jogo é mais desafiador, aberto e envolvente do que qualquer exploração de nível baixo. Observar os personagens descobrirem que podem limpar túneis de mofo com uma Decanter of Endless Water, explorar túneis com Wizard Eye para serem teleportados depois, ou transformar uma área em lama e forrar os lados com óleo queimando para que as criaturas dentro não escapem, apenas para depois dissipar a área e transformá-la novamente em rocha, prendendo todos dentro, é uma experiência alegre. O oponente não deve ser apenas antecipado em termos de ameaças mundanas, mas também em termos do arsenal mágico que ele tem à sua disposição, algo inextricavelmente ligado à substância do jogo. Se bem feito, poderes adicionais devem aumentar a criatividade, em vez de sufocá-la. O campo de batalha mundano e supramundano se misturam. O que poderia ser uma expressão mais verdadeira de um jogo de aventura fantástica [4]?
Contudo, qual é a tendência atual em direção a jogos simplificados e aventuras de nível baixo, senão o oposto disso? O desejo de repetir ad infinitum, com máxima eficiência teórica, os primeiros 3 níveis do jogo, com pequenas variações. O jogo nunca se expande. Os embusteiros do falso OSR fizeram você acreditar que a fase tutorial do jogo é, de alguma forma, sua expressão mais verdadeira [5], e que você nunca deve sair do porão dos seus pais. Que seu poder reside em poucos pontos de vida, baixa magia e micro-sessões de 2 horas. Se a própria noção não te faz recuar com repulsa, então você está no hobby errado.
Com o declínio da qualidade artesanal e a definição cada vez mais confusa do que constitui o OSR, é imperativo que identifiquemos e erradiquemos as ervas daninhas cognitivas que foram semeadas pelos feiticeiros, lunáticos e charlatões do OSR dos dias de hoje e restauremos o jogo da velha escola ao seu estado adequado. Se alguma parte do OSR deve ser libertada do encantamento que a prendeu nesta forma monstruosa e auto-devoradora, e acolhida no seio do Jogo de Aventura Fantástica [6], é por isso que devemos lutar.
Digo a você: D&D de nível alto viverá novamente.
∞ PrinceofNothing ∞
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1. https://princeofnothingblogs.wordpress.com/2023/09/09/the-answer-is-not-on-your-character-sheet-a-correction/
2. Quick Primer de Math Finch traduzido pelo Café com Dungeon
3. https://dustdigger.blogspot.com/2024/09/o-que-e-artpunk.html
4. https://dustdigger.blogspot.com/2024/08/explicando-o-que-os-jogos-de-aventura.html
5. https://dustdigger.blogspot.com/2024/08/jogo-de-aventura-basico.html
6. https://dustdigger.blogspot.com/2024/08/o-que-e-classic-adventure-gaming-cag.html
Ótimo texto!
ResponderExcluirDe fato. Somos gratos ao Prince of Nothing!
ExcluirMuito bom o texto. É refrescante ver algo diferente do que a velha escola do "diga não às regras" que temos por aqui a tempos. Já deu de B/X por hoje.
ResponderExcluirSalve!
ExcluirQuem pratica B/X concretamente com regularidade, intensidade e amor, acaba chegando num momento em que anseia por voos mais altos...
Vida longa ao B/X! Porém, crescemos e passamos das fases iniciais. As fases intermediárias e elevadas exigem regras mais robustas, esta é a verdade.
Ou então adapta-se o B/X, com algum trabalho, como diz o seguinte texto: https://dustdigger.blogspot.com/2024/08/jogo-de-aventura-basico.html
Abraço!