domingo, 7 de dezembro de 2025

Preparação Clássica

(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em setembro de 2021)

BlackRazor aponta o estilo de jogo presente na primeira edição de Advanced Dungeons & Dragons como a melhor expressão de D&D de acordo com sua visão...

Já faz quase uma semana desde meus últimos três posts [2][3][4], e tenho usado meu (pouco) tempo livre desde então para pensar sobre meu “tema” e exatamente o que quero escrever. É difícil, porque há muita coisa acontecendo no “mundo” do jogo de D&D.

Segure esse pensamento.

Primeiro, vamos começar com o blog de outra pessoa. Se você não leu o ensaio Six Cultures of Play (tradução aqui: [5]], do The Retired Adventurer, deveria. Eu o li várias vezes nos últimos meses, tentando absorvê-lo; ontem, ouvi uma leitura em podcast do ensaio (enquanto fazia tarefas domésticas) e sinto que tenho uma compreensão ainda melhor desses conceitos… tentando ver como se encaixam com minhas próprias experiências E aqueles relatos de outras pessoas que tenho lido. Em relação a Dungeons & Dragons, duas ideias continuam martelando na minha cabeça quando considero o desenvolvimento/evolução do role-playing:
  1. Já é tarde demais para fechar a porta do celeiro?
  2. Eu deveria ao menos me preocupar com o cavalo que fugiu?
Eu conheço várias mentes muito respeitáveis que diriam que a resposta para a #2 é um NÃO definitivo e, portanto, a #1 nem vale a pena ser discutida. É a mentalidade de: “tenho meu jogo, vou conduzi-lo como quero, e o resto que se dane.” Outras mentes, menos respeitáveis, sentem o mesmo… ou pelo menos chegam à mesma conclusão: “é o que é”, dizem.

E, sim, há aqueles que só querem encontrar uma maneira de ganhar dinheiro com qualquer que seja a direção em que o vento esteja soprando. Um mercador da guerra pode vender armas para ambos os lados de um conflito, afinal.

Mas eu sou um idiota. E conquistei certa reputação por me insurgir contra (e me recusar a aceitar) simplesmente “o que é”. Gritar no escuro é basicamente o que eu faço… então vamos nessa, porra!

Nos últimos dias, cheguei à conclusão de que existe apenas UMA VERDADEIRA edição de Dungeons & Dragons. Isso é, claro, flagrantemente e comprovadamente falso, como qualquer jogador com meio cérebro pode dizer: pessoas de todos os tipos continuam a jogar todas as edições (e variantes) já publicadas (por minha conta: cerca de 13) ALÉM de duas dúzias ou mais de hacks, heartbreakers, retroclones e homenagens. Sim, eu concordo… sou um idiota da porra por fazer tal afirmação.

Há apenas UMA VERDADEIRA edição (publicada) de Dungeons & Dragons. Sim, eu sou péssimo e estou errado, e consigo sentir as frutas podres e o lixo que as pessoas estão jogando em mim só de escrever isso. E o ÓDIO… o ódio venenoso que as pessoas terão ao me ouvir dizer uma coisa tão infame. Porque estou supondo que muitas pessoas (bem, meus leitores pelo menos) sabem, bem no fundo dos seus corações, a verdade (ou suspeitam da verdade) da minha afirmação, e isso não cairá bem por uma VARIEDADE de razões. E quanto pior isso cair para você, mais resistência e ressentimento e ódio espero receber.

[talvez um pouco de perplexidade também… mas essas pessoas estiveram perplexas durante toda esta série. Eu tenho um palpite de POR QUE isso acontece, mas não quero abordar isso… pelo menos não neste post]

Então vá em frente, diga comigo. Vocês todos sabem qual é a “única edição verdadeira” de D&D, não sabem? Eu nem preciso escrever (embora vá), porque para qualquer um que esteja lendo este post, provavelmente existe uma imagem específica de uma edição específica que vem à mente quando alguém ouve o termo “Dungeons & Dragons”, uma ilustração colorida que (por qualquer motivo) está profundamente gravada em seu cérebro em associação com o jogo. Provavelmente. Eu diria pelo menos 90%. Mesmo que a imagem não tenha NADA a ver com a edição (ou jogo) que você atualmente joga/mestra.

AD&D. A “primeira” edição. A obra-prima de Gygax. É essa: o jogo verdadeiro.

Não OD&D (com todo respeito ao legado de Arneson e à opinião de Rob Kuntz… sim, eu li seu livro). Os livros originais eram um proto-jogo, algo em sua fase formativa, um complemento para Chainmail, uma formalização das regras de Braunstein. Não B/X (embora ainda seja a melhor introdução para aprender/ensinar o jogo), nem qualquer outra versão “básica”. E definitivamente não a versão 2E, higienizada, de Cook, nem as versões posteriores e inovadas. Certamente não a 5E publicada atualmente que (na minha opinião) faz uma zombaria dos sistemas anteriores com sua tentativa de chegar em um consenso em todas as frentes.

Advanced Dungeons & Dragons, aquela tríade áspera, draconiana e rabugenta de tomos (DMG, PHB, MM) cristalizou o “sistema” iniciado pelos três Pequenos Livros Marrons [LBBs: Little Brown Books, os três livros originais do OD&D]… três livros tão dolorosamente incompletos que levaram a meia dúzia de suplementos e incontáveis variações do Jogo em campi universitários nos EUA e bases militares pelo mundo. AD&D, sozinho… sem volumes adicionais necessários… era íntegro e completo. Tudo que foi adicionado depois… Fiend Folio, Deities & Demigods, Unearthed Arcana, Dungeoneer’s Survival Guide, etc.… era, na melhor das hipóteses, GLACÊ e, na pior, caça-níquei$ descarados. Quer você goste deles ou não (eu gosto de vários), TODOS são supérfluos ao jogo. Muitos fazem mais para QUEBRAR sua funcionalidade do que ajudar.

*exala*

Não é um jogo perfeito… há poucos (se é que há) jogos que SÃO perfeitos. Tem inconsistências e tropeços. Polimorfismo de mortos-vivos. Linguagem de alinhamento. Limitações de habilidades baseadas em sexo. Color Spray. Muitos exemplos existem… quase todos facilmente corrigíveis sem destruir a funcionalidade (ou seja, sem quebrar o jogo). E embora não seja perfeito… e definitivamente um pouco “complexo”… é um jogo maravilhoso. Extremamente jogável. Incrivelmente divertido. Meu jogo favorito de todos os tempos e um dos maiores já criados.

E um dos mais mal compreendidos.

E não estou falando de “mal compreendido” por misoginia inerente ou atitudes colonialistas ou o que for. A incompreensão da qual falo é Como Jogar o Jogo e Sobre o Que É o Jogo… peças fundamentais básicas da jogabilidade, em outras palavras. Parte disso se deve à inaptidão do autor (Gygax). Parte disso se deve a uma comunidade de jogadores de OD&D já atuando com grande variação antes da publicação de AD&D. Parte disso se deve aos novos entrantes do hobby, chegando com ideias incoerentes do que D&D É e não sendo desiludidos por uma editora (sob QUALQUER bandeira ou grupo proprietário) cujo objetivo foi e continua sendo lucrar com essa “coisa” (Dungeons & Dragons) que nem nós entendemos direito.

O ensaio de John Bell (citado no início deste post) deixa de abordar isso em qualquer uma de suas “seis culturas de jogo”, mas das seis é o modelo Clássico que chega mais perto, especificamente com esta frase:
O objetivo de jogar o jogo no modelo clássico não é contar uma história (embora não haja problema se você o fizer), mas sim que o foco do jogo é lidar com desafios e ameaças que aumentam suavemente em escopo e poder à medida que os PJs sobem de nível.
[ênfase adicionada por mim, como sempre]

Bell pode ter sido mais preciso ao afirmar que o jogo “clássico” não se destina a “contar uma história” da mesma forma que um jogador trad, neo-trad ou “story gamer” conta uma história, mas o objetivo do jogo NÃO se limita a vagar por aí (e trombar) desafios de progressão proporcionalmente crescente. D&D, quando jogado no estilo adequado, não é um videogame e não opera sob os pressupostos de jogo de videogame. Ou melhor, ele tem ALGUMA semelhança com RPGs eletrônicos… geralmente os mais antigos (aqui cito The Bard’s Tale e Phantasie III: The Wrath of Nikademus, da SSI), que se inspiraram em Dungeons & Dragons, mas que eram limitados por seu meio particular… ou seja, a necessidade de serem finitos [6] e exigirem um ponto final para sua “história”.

O modo correto de jogar D&D (e, sim, mais uma vez, joguem seus tomates em mim e insiram suas aspas sempre que eu escrever “correto”) envolve a contação de não uma, mas TRÊS histórias, das quais apenas duas importam muito, e NENHUMA exige qualquer tipo de “satisfação emocional” a partir de uma estrutura narrativa em desenvolvimento. São elas:
  1. O Antecedente do Cenário
  2. As Ações dos PJs
  3. O Desenvolvimento da Campanha
O antecedente do cenário é todo o material voltado ao MJ que entra na preparação antes do jogo. É a criação e delineação das terras e estruturas de poder, determinar os porquês e comos de quaisquer masmorras, “histórias” do mundo, reflexões sobre por que monstros existem e a conceitualização de como a magia funciona. É todo o conjunto de “fluff” que o MJ precisa adicionar para tornar um cenário adequado à condução de um jogo de D&D; ele pode ser amorfo, específico ou gradualmente construído ao longo de muitas sessões. Pode ser baseado em coisas reais, romances, filmes, ou qualquer outra coisa. Essa história em particular importa bem menos para os jogadores do que para o Mestre de Jogo, pois a “sensibilidade” de um cenário é apenas uma preocupação secundária comparada à ação na mesa, assumindo-se que o MJ é competente (isto é, se os jogadores estão mais animados discutindo o pano de fundo do cenário do que “o que está acontecendo” no jogo, então há um grande problema na capacidade do MJ de gerar engajamento).

A segunda história sendo contada, e a de maior preocupação imediata para todos na mesa, é a história das ações dos personagens jogadores. Isso é o jogo em si e (como já escrevi antes) deveria ter toda a estrutura narrativa e temática de uma viagem de acampamento realmente maluca… ou seja: quase nenhuma. É simplesmente a história do que os PJs fizeram em qualquer sessão particular. Não se preocupa com origens [backgrounds] de personagens ou drama, e sim com AÇÕES. Teve combate? Uma masmorra foi explorada? Alguém morreu? Houve uma vitória realmente memorável? Um PJ foi transformado em algo “não natural”? O lojista era um rabugento? Os goblins se tornaram aliados inesperados? Etc. D&D, corretamente jogado, proporciona engajamento no momento por causa das circunstâncias do jogo, não por qualquer “narrativa construída com significado”. E é esse engajamento que leva a um investimento emocional muito mais profundo do que algo pré-construído antes do jogo.

A história final sendo contada ao longo de uma verdadeira e adequada campanha de D&D é a do desenvolvimento da campanha. Essa é a história... na verdade, o legado... do cenário/mundo do MJ após ter sido encontrado pelos jogadores. Como na vida real, ninguém sabe, quando o jogo começa, quem acabará sendo o herói, quem será o bobalhão, quem está destinado a morrer de forma trágica (ou humorística), ou como a história do mundo da campanha será escrita. Dependendo da duração da campanha, o cenário pode ser RADICALMENTE alterado ao longo do tempo, com reinos surgindo e ruindo, regiões sendo “bombardeadas” por magia ou monstros, antigas masmorras sendo limpas e novas sendo descobertas… sem mencionar todos os fracassos e sucessos em um caminho repleto de cadáveres de aventureiros mortos (e ressuscitados e mortos novamente). Ao final de uma campanha assim… SE ela terminar… um tema comum pode emergir, mas é igualmente possível encontrar uma “história mundial” interessante apresentando as peripécias de muitos indivíduos importantes (personagens jogadores) com impacto menor ou maior.

O problema com o jogo “clássico” como definido por Bell... e UMA das razões por trás da mudança para o jogo “trad”... surge quando a imaginação e/ou o esforço por parte do Mestre de Jogo falha para com os jogadores na mesa. Quando NÃO HÁ engajamento, porque o mundo é simples demais, entediante, indefinido, não realizado… quando o jogo não passa de uma versão ampliada do jogo de tabuleiro Dungeon!, então sim, os jogadores tentarão encontrar seus PRÓPRIOS métodos de se divertir, criando históricos [backgrounds] dramáticos para apimentar um cenário sem graça, inventando vozes engraçadas e personalidades excêntricas para avatares insossos que não representam mais do que uma coleção de números rabiscados em papel. O próprio Gygax reconheceu isso e escreveu sobre o tema em sua seção The Ongoing Campaign [A Campanha Contínua] (DMG, p. 112):
…deve haver algum propósito para tudo isso. Deve haver algum pano de fundo contra o qual as aventuras sejam realizadas e, por mais tênues que sejam os fios, alguma teia que conecte o mal e o bem, os poderes opostos, os estados rivais e vários povos. Isso não precisa ser evidente no começo, mas à medida que o jogo continua, pistas devem ser dadas aos jogadores, e seus personagens devem se envolver na interação e luta entre essas entidades maiores. Assim, os personagens começam como menos que peões, mas à medida que progridem em expertise, cada um eventualmente percebe que ele ou ela é uma peça significativa, ainda que humilde, no jogo cósmico em andamento. Quando isso ocorre, os jogadores passam a ter um duplo propósito no jogo… suas ações passam a ter significado além do simples engrandecimento pessoal.
O jogo “clássico” NÃO se limita, portanto, ao “jogo baseado em desafios”, voltado unicamente para progredir até enfrentar monstros maiores com tesouros mais volumosos. Um bom desempenho por parte dos jogadores realmente leva ao avanço, garantindo-lhes o direito e (esperançosamente) a capacidade de enfrentar tais desafios, mas isso não é o objetivo final do jogo… nem de longe!

Da mesma forma, observe que o texto de Gygax NÃO se refere ao estabelecimento de domínios e fortalezas. Como ele escreve no parágrafo imediatamente anterior: “...até mesmo seus jogadores mais dedicados ocasionalmente acharão que níveis de masmorras e castelos na selva se tornam enfadonhos, apesar de diferenças sutis e desafios incomuns.” Ele está falando sobre sustentar campanhas através de algo mais, a fim de evitar a “deserção dos participantes” e a “apatia dos entusiastas”. O jogo completo... conforme idealizado por Gygax e codificado em seus tomos de AD&D... deveria ser mais do que isso.

O que ele nunca deveria ter sido, porém, é aquilo em que se transformou após a expulsão de Gygax da empresa em 1986. Cada iteração do jogo desde que Gygax finalizou sua formulação do DMG (por volta de 1979), cada variante… até as do próprio Gygax!... levou o jogo cada vez mais para longe da forma como deveria ser jogado. Esse desvio nos parâmetros do design do jogo não pode ser colocada inteiramente nas costas da editora, é claro (já falo disso), mas são as editoras (TSR, WotC, Hasbro, etc.) que, em última instância, carregam a responsabilidade por como o jogo é jogado. Só a editora, como proprietária e guardiã, tem autoridade real e influência sobre sua base de consumidores.

E as editoras atuais, em grande parte, abdicaram dessa responsabilidade, focando apenas em marketing e na venda da marca. “Divirta-se! Transforme o jogo no que você quiser!”, eles dizem [contanto que você continue colocando dinheiro no nosso bolso… essa é a parte não dita]. Considere isto: se eles REALMENTE declarassem “é assim que se deve jogar D&D”, haveria toda essa confusão, discussões e desinformação sendo espalhadas pela Velha Internet? Haveria blogs e comentaristas denunciando uma edição ou outra? Haveria jovens recorrendo a Matt Mercer para tentar descobrir COMO se deve jogar este tal de D&D?

Assim, em vez disso, você vê pessoas comprando o jogo… e depois o abandonando na estante. Pessoas que “experimentam” um pouco… e depois migram para outros hobbies. Entusiastas que perdem o entusiasmo… e desviam para RPGs que atendem melhor às suas prioridades de jogo.

E você tem uma infinidade de pessoas gritando assassinato sangrento umas com as outras por algo que deveria ser o jogo mais incrível e inovador já inventado!

AGORA… quando escrevo que existe apenas UMA VERDADEIRA edição de D&D, não estou sendo sarcástico. Nem estou julgando sua edição preferida de jogo. Ora, estou prestes a publicar outro suplemento para o jogo B/X eu mesmo (antes do fim do ano, dedos cruzados), então seria ótimo para mim, pessoalmente, se você fosse aberto a outras versões das regras!

Não estou tentando denegrir seus gostos, seu estilo, nem nada disso. E não estou dizendo que AD&D é um jogo perfeito, nem que E. Gary Gygax foi um designer perfeito. Estou apenas dizendo que é o melhor jogo que já encontrei, e que o Sr. Gygax foi em grande parte responsável por sua melhor iteração. E eu gostaria que mais pessoas o jogassem… e o jogassem da maneira como foi planejado, que não é “clássica” nem “tradicional”. Nem (de modo geral) no estilo da OSR, nem da escola OC/Neo-Trad.

Neste exato momento, tenho um post-it colado no meu DMG com 7 elementos do “verdadeiro D&D” rabiscados. De certa forma, esses elementos são aquilo que eu gostaria de instituir como substituto do mítico ethos Old School que refutei em um post anterior. Eles não se destinam a funcionar como um novo “guia introdutório” [primer]… suspeito que nenhum dos meus leitores precise de instruções tão elementares do jogo de D&D… mas sim a “preparar” [prime] o leitor, no sentido de deixá-lo pronto (por exemplo, preparando a bomba [priming the pump]) para o jogo, tanto como jogador quanto como Mestre de Jogo.

Isso ficará para o post de amanhã, já que este aqui já se estendeu demais. Sintam-se à vontade para postar suas denúncias moedazes na seção de comentários.

∞ BlackRazor ∞

 
* Este texto faz parte de uma sequência que pode ser conferida aqui.

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