(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em janeiro de 2018)
Então, ontem tivemos uma ótima sessão de jogo em que os personagens se aventuraram pelos ermos em busca de vários ganchos de aventura, alguns específicos da campanha e outros simplesmente mercenários. Havia ruínas esquecidas, grandes cabeças de pedra vomitando serpentes venenosas, um ataque de grifo contra o único cavalo do grupo frustrado por um muito oportuno feitiço de Gust of Wind, lagos montanhosos com gelo mágico, um poço de lama cheio de sanguessugas gigantes no qual um PJ simplesmente entrou, e misteriosos círculos de pedra com mensagens rúnicas. Todos se divertiram bastante. Na noite anterior, eu estava em pânico diante de uma folha em branco e do The Tome of Adventure Design, tentando fazer algumas faíscas fracas de criatividade virarem fogo enquanto o relógio corria. Isso acontece toda vez que escrevo uma aventura de ermo, e apesar da prática e do fato de eu ser muito bom em conduzi-las, não melhora muito. Escrever aventuras de ermo é surpreendentemente difícil se não recorrermos a alguns conceitos já muito usados (que discutirei abaixo).
Há um bom motivo para tantas aventuras de D&D acontecerem em masmorras, e não é apenas porque descer a um submundo misterioso [2[ cheio de perigos e riquezas é uma ideia tão atraente. As masmorras são uma das estruturas de jogo [3] mais bem-sucedidas, equilibrando facilidade de uso com muito potencial para complexidade e profundidade. E, claro, muitas das regras (incluindo descrições de feitiços) aplicam-se às masmorras, ou são formuladas no contexto delas. As masmorras nos deram a linguagem original para aventuras baseadas em locais, e esse legado aparece na maioria dos materiais de jogo, mesmo naqueles que não descrevem masmorras em si, mas que se parecem com elas de qualquer maneira. “Semelhante-a-masmorras” talvez sejam a forma mais comum de cenário de RPG depois dos baseados em missões.
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| Scorpion Swamp: pointcrawl original... |
Infelizmente, os livretos de OD&D nunca desenvolveram um mecanismo igualmente poderoso para aventuras ao ar livre. Há muitas ideias fascinantes espalhadas pelo texto de The Underworld & Wilderness Adventures, que delineiam algum tipo de cenário implícito, mas não tenho certeza de que Gary & Cia. as usaram de forma tão coesa ou abrangente. Apesar de suas virtudes, isso não capturou a imaginação popular e foi praticamente esquecido até que o interesse por OD&D fosse reacendido nos anos 2000. Algo semelhante aconteceu com o simples e incrivelmente funcional sistema de hexágonos de campanha da Judges Guild — há muitos mapas hexagonais em produtos de jogo dos anos 1980 e 1990, mas eles são vestigiais, usados apenas para medir distâncias, e não para estruturar e conduzir o espaço de jogo. Por outro lado, as diretrizes de exploração de ermos no Dungeon Masters Guide de AD&D não formam um sistema completo: são ideias desconectadas que se relacionam ao gerenciamento de um ermo, mas não apresentam procedimentos claros a serem seguidos em jogo. No fim, mais espaço no DMG é dedicado ao combate aéreo do que ao design de um ermo. A série de livros-jogos Fighting Fantasy teve o excelente Scorpion Swamp de Steve Jackson (o americano), que mapeava um pântano em uma grade quadriculada composta por “clareiras”, cada uma com algum tipo de encontro. Esse talvez tenha sido o melhor modelo de jogo de ermo não linear, mas não chegou a influenciar de fato os jogos de mesa.
Sabemos muito sobre o megadungeon (“o submundo mítico” ["mythic underworld"]), mas nem sequer temos uma ideia desenvolvida de forma aproximada sobre a... mega-natureza selvagem (Moorcock a chamava de “a paisagem exótica” em Wizardry and Wild Romance). O ermo como um lugar de perigos fantásticos, maravilhas naturais, adversários monstruosos e história perdida tem ainda mais precedentes na literatura fantástica do que grandes masmorras, e mapas de ermos são um grande atrativo no fandom de fantasia, mas isso não foi destilado em um pacote coerente de regras, diretrizes e blocos de construção. O mais próximo disso é o hex-crawl, que oferece deslocamento em grande escala baseado em movimentos diários em um mapa hexagonal, pontos de interesse para explorar e tabelas de encontros aleatórios para complicar as coisas. É a melhor maneira que conheço de conduzir grandes expedições. Mas até a poderosa Judges Guild tropeçou ao tentar empacotar um pedaço menor de ermo em uma aventura. Hexágonos falham quando aplicados a terrenos mais detalhados (há hexágonos demais e, ao mesmo tempo, hexágonos de menos), e isso nem chega a abordar o preenchimento do ermo com encontros interessantes.
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As consequências têm nos acompanhado desde então. Onde conduzir um local composto por salas e passagens conectadas possui padrões estabelecidos e muitas técnicas e geradores de ideias úteis, o mesmo não se aplica a conduzir uma paisagem aberta. Na ausência de traduzir a ideia de atravessar cenários fantásticos e descobrir perigos e riquezas neles em algo jogável, temos a tendência de recorrer a muletas e substitutos.
| Eriador: terra do planejamento rodoviário precário... |
Um dos maiores substitutos são as estradas. As estradas conectam grandes centros de atividade, como cidades e masmorras, e podem ter paradas interessantes (estalagens, encontros, coisas para ver e covis à beira do caminho para explorar), o que torna a jornada empolgante. Estradas podem ser concretas ou figurativas (rios, vales etc.). Estradas são a solução mais fácil, mas também são preguiçosas, e tornam os jogadores preguiçosos. Assim como a masmorra excessivamente linear, elas cultivam maus hábitos e carecem do verdadeiro sentimento de descoberta. Por todo o cuidado que dedico aos meus mapas de ermo, meus jogadores ainda têm o hábito irritante de permanecer nas estradas e deixar de lado vários pontos de interesse. Eu preciso ou apontá-los diretamente para a proximidade, ou puxar o tapete debaixo de seus pés para empurrá-los para o modo de expedição. Esta é uma das grandes razões pelas quais meus cenários têm cada vez menos redes de estradas desenvolvidas, e trilhas ocasionais se dispersam depois de alguns poucos hexágonos. (Mares e grandes massas de água também incentivam uma abordagem de exploração aberta.)
Outro substituto para a ação profunda no ermo é povoar o ermo com masmorras em vez de tratá-lo como uma. Este é o caso clássico de recorrer a modos de jogo familiares para evitar se enredar em um que é menos definido. Mini-masmorras são fáceis de desenvolver com um tempo apertado e oferecem um bom retorno pelo esforço. Mas o momento em que você entra em uma mini-masmorra também é o momento em que você sai do ermo. Você pode até ver isso em Wilderlands of High Fantasy, cujo ermo é povoado por “Cidadelas e Castelos”, “Ruínas e Relíquias”, “Ilhas Idílicas” e “Covis Lúgubres”. É tudo sobre coisas não exatamente selvagens que você encontra no ermo.
O terceiro substituto é usar encontros com monstros, e muitos deles. Isso é amplamente lógico: você povoa uma masmorra com monstros de masmorra, e povoa um ermo com monstros de ermo. Os monstros têm covis e também podem ser encontrados vagando aleatoriamente e talvez entrando em conflitos e interações entre si. Mas assim como uma masmorra cheia de “armários de monstros” se torna monótona, o mesmo ocorre com um ermo cheio de “armários de monstros”.
Talvez ainda estejamos deixando de ver a floresta por causa das árvores?
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Então, e quanto ao verdadeiro jogo de ermo? Não há uma grande solução neste texto, e parte disso parece até óbvia de reafirmar — mas aqui vai. Deve ser algo análogo a uma masmorra desenvolvida, mas usando a lógica fantástica de jogo da paisagem exótica, em vez da lógica fantástica do submundo mítico. Deve ser intuitivamente compreensível e fácil de reproduzir na preparação e no jogo. Aqui estão apenas algumas coisas que, na minha opinião, merecem reflexão e atenção.
Deve haver um sistema de movimentação robusto para ajudar os jogadores a navegar. Isso pode ser uma combinação de point-crawl (um sistema de linhas conectando encontros de forma interessante, como corredores e salas de uma masmorra), navegação baseada em marcos (aproximar-se, evitar ou deixar para trás marcos naturais e artificiais e características de terreno distintas) e movimento baseado na bússola (mover-se em qualquer uma das oito direções cardinais e colaterais). Esse sistema deve ser lúdico, mas flexível, com ampla aplicabilidade. Não é necessário calcular pontos de movimento ou cruzar referências de carga com tipos de terreno, mas deve haver um modo para permitir que o MJ e os jogadores descrevam o deslocamento do grupo pelos ermos em termos simples.
É útil ter procedimentos bons e simples para exploração. Os procedimentos de exploração de masmorras dizem como atravessar um abismo, manter a expedição iluminada, arrombar uma porta e assim por diante. Da mesma forma, procedimentos de ermo deveriam nos dizer como forragear comida, montar vigília noturna, navegar por uma trilha montanhosa traiçoeira, cuidar de animais de carga e identificar marcos importantes à distância. Nada disso deveria ser mais complicado do que algumas decisões rotineiras dos jogadores e algumas rolagens de dado — afinal, o foco está em coisas perigosas e fantásticas, e os procedimentos de exploração servem para ancorá-las em um senso de realidade.
Ligado ao ponto anterior, talvez haja necessidade de reconsiderar algumas regras de jogo a partir da perspectiva do ermo. Isso não é algo novo, já que as coisas funcionavam de maneira diferente nas seções de masmorra e de ermo do OD&D, mas tem sido explorado apenas de forma inadequada. Se, por exemplo, os feitiços foram escritos tendo a masmorra em mente [4], como elas funcionam em uma floresta? Nas montanhas? Posso erguer uma árvore caída que bloqueia nosso caminho com um teste de abrir portas?
| Mapeando uma região selvagem... |
Mas, acima de tudo, devemos reconsiderar o que faz um bom encontro de ermo. Além de encontros com monstros, masmorras têm ambientação (ornamentos de masmorra [dungeon dressing]), armadilhas, truques e enigmas. Quais são os equivalentes disso em um local selvagem? Essa é a questão principal. Claro, muitos acessórios típicos de masmorra têm lugar no ermo. Estátuas misteriosas, poços cintilantes ou fendas profundas com algo interessante no fundo funcionam tão bem em uma floresta encantada quanto no submundo. Armadilhas mecânicas e portas secretas são mais difíceis de adaptar. Terreno traiçoeiro? Vegetação malévola? Algo oculto nas raízes de uma árvore colossal? Esses deveriam ser encontros em que os personagens podem observar, experimentar e propor ideias pouco ortodoxas para cortar nós Górdios. Como atravessamos um rio enfurecido? Pegamos a ponte escorregadia e conveniente até demais, ou criamos nossa própria ponte de cordas? Como investigamos uma cabana aparentemente abandonada? Essas questões abertas geram aventuras memoráveis, cheias de improvisação e momentos de “Eureka!”.
O maior potencial está em colocar ideias de romances de aventura, filmes, mitologia e fantasia no contexto de uma paisagem mágica e gamificada, e misturá-las até que se tornem algo próprio. Esses são os equivalentes dos verdadeiros truques/enigmas de masmorra [5], como o campo encantado, a árvore carregada de diferentes tipos de frutos mágicos, o bosque funerário onde os mortos antigos se erguem para consultar os vivos, e muitas outras ideias. Não se trata da tradução literal de conceitos originais, mas de criar algo novo através do poder da lógica onírica e de associações soltas. É em algum lugar nesses alicerces que encontraremos a verdadeira ideia da mega-natureza selvagem, e poderemos dar a ela uma forma que possamos engarrafar e distribuir a outros jogadores.
∞ Gabor Lux ∞
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