sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

O "Drift"

(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em setembro de 2021)

BlackRazor continua seus comentários sobre o D&D Clássico e a tendência presente em grande parte do que é conhecido como "OSR" em "desviá-lo", usando a definição do termo "drift" apresentada pelo The Forge, que exerceu/exerce uma influência notável sobre algumas pessoas no OSR...

[uma interlúdio necessário]

Dos comentários no post de terça-feira [2]:

GusL escreveu:
Em geral eu concordo que 5E, Critical Roll e todas as outras formas contemporâneas de design e jogo parecem novas. Eu tentei entendê-las e, francamente, não consigo. Eu gostaria que alguém que entende explicasse do que se trata, mas não vi ninguém realmente explicar as alegrias desse estilo de jogo...
e Jojodogboy escreveu:
...os jogadores modernos se afastaram dos RPGs como jogo e caminharam para o RPG como evento.
O gerenciamento de recursos fazia parte do design original, já que o planejamento logístico foi retirado de outros jogos da época. Isso significa carga e contabilidade [3][4]. O mesmo vale para XP. É uma forma de manter “pontuação”. Esse também é um elemento de jogo que exige contabilidade. Um terceiro elemento de jogo era o conceito de dificuldade selecionada pelo jogador, significando que os jogadores definem níveis de risco ao irem “mais fundo”. Risco maior, mas mais recompensa. Finalmente, como exemplo, monstros errantes eram um elemento de jogo adicionado para criar pressão de tempo e recursos sobre o grupo.

Cada pequeno exemplo acima foi ignorado ou deixado de lado ao longo dos anos, por uma variedade de razões. À medida que cada uma dessas peças (e outras, como progressão de classe assimétrica e jogo sandbox) foram removidas, D&D se afastou de ser um jogo e passou a se tornar mais uma experiência.
Talvez sem surpresa, nada disso é realmente “novo”.

De The Forge: Provisional Glossary (Ron Edwards, 2004):

Drift
Mudar de uma Agenda Criativa para outra, ou da falta de uma Agenda Criativa compartilhada para uma específica, durante o jogo, tipicamente através da mudança do Sistema. Em termos observacionais, muitas vezes marcado por decidir abertamente ignorar ou alterar o uso de uma regra específica.
Agenda Criativa
As prioridades estéticas e quaisquer questões de interesse imaginativo no que diz respeito ao role-playing.
Ênfase adicionada por este vosso amigo. Por favor, observe que não estou usando os antigos termos (desde então considerados obsoletos) descritos como GNS (Gamista, Narrativista, Simulacionista). Em vez disso, pense em “agenda criativa” como a “prioridade de jogo” de um indivíduo ou grupo.

O ensaio de 2003 A Hard Look at Dungeons & Dragons (2003), de Edwards, também é um ponto de partida útil. No entanto, o mais importante a se extrair desse artigo (para fins deste post) é:
Antes de AD&D2, os textos disponíveis eram reflexivos, não prescritivos, do jogo real. Seu conteúdo era filtrado pelas prioridades dos autores, que eram muito diversas.
[evidências para sustentar essa afirmação, especialmente a primeira sentença, podem ser encontradas em uma infinidade de entrevistas com os desenvolvedores originais do jogo disponíveis na internet (especialmente de Ernie Gygax e Mike Carr, editor do DMG). Um tema comum é “estávamos escrevendo as regras conforme eram jogadas”. Evidências das diferentes prioridades podem ser vistas nos relatos de estilos distintos de jogo entre indivíduos como Gygax, Arneson, Ed Greenwood, Bill Willingham, etc.]

Edwards (junto com outros) estava tentando formular grandes teorias de design de RPG; algo que (no momento) tenho pouquíssimo interesse em fazer. Mas para isso, ele teve que analisar Dungeons & Dragons, como se desenvolveu ao longo do tempo (ainda que superficialmente) e como RPGs posteriores derivaram dele e dos primeiros entusiastas do hobby. Isso ele fez até os dias do D20 (edições 3.0/3.5). Para meus propósitos, cavar as coisas pertinentes de D&D é um trabalho danado, dificultado pela pouca importância que ele atribuía ao jogo além de como um ponto interessante na evolução do role-playing... mas escavar pode produzir alguns resultados.

E aqui está o que se encontra: o desenvolvimento (para o bem ou para o mal) do jogo D&D é a porra de um ciclo que se repete sem parar. Wargames forneceram uma sistematização da guerra; Braunstein inseriu elementos centrados na história dentro do sistema. D&D forneceu uma sistematização dessas histórias individuais; o D&D de meados dos anos 80 adicionou “significado” (história novamente) às campanhas que D&D desenvolveu. 3E e 4E tentaram adicionar (ou re-enfatizar) sistemas/mecânicas para D&D; 5E adicionou antecedentes e mecânicas orientadas à história (como intuição, vantagem/desvantagem, etc.) de volta essas mecânicas.

Toda vez que D&D começa a definir como quer ser um jogo, a imaginação de alguém se acende e diz: “puxa, é uma pena que as regras atrapalhem a gente de fazer isso...”

Lendo aquela citação de Jojodogboy, fiquei impressionado com o quanto isso refletia diretamente minha própria experiência na década de 1980. Nós jogávamos com todas as regras, mas gradualmente encontrávamos maneiras de contornar (ou ignorar) regras que “prejudicavam” o jogo (sem contabilidade [book-keeping]) na mesa. Carga te desanimando? Garanta que você tenha armaduras encantadas e buracos portáteis. Não quer contar rações? O grupo encontra um novo item mágico: uma bolsa de comida, que garante que vocês sempre estejam abastecidos. Precisa parar de se preocupar com custos de treinamento e aumento de nível em geral? Basta introduzir novos personagens já com níveis apropriados para o cenário atual (como pré-gerados, exceto que depois se tornam PJs ou PNJss permanentes)... especialmente aqueles com (*argh*) histórias de fundo [backstories] que os conectavam à campanha em andamento.

Tudo isso é para dizer: nós (meu grupo) começamos a desviar [drifting] o jogo para algo diferente do Dungeons & Dragons baseado em gerenciamento de recursos e desafios. Algo muito mais interessado em interação entre personagens e muito menos preocupado com exploração de masmorras... embora não estivéssemos jogando Dragonlance ou 2E ou qualquer coisa assim (isso foi por volta de ’86 e ’87). O que personagens de nível alto fazem? Eles conspiram... muitas vezes uns contra os outros, quando outros atores (patronos, nêmesis) não estão presentes na campanha.

Mas esse tipo de jogo não está claramente presente em AD&D (sim, Jeffro, pode ser inferido por pistas encontradas no DMG, mas está longe de ser explícito). E está bem longe de ser apoiado pelas regras (Rápido! Qual é o dote de uma baronesa francesa? De quanto terreno arável você precisa para cultivar grãos suficientes para seu exército permanente sem famintar o campesinato? Qual é o custo para construir um moinho funcional e quantos assistentes o moleiro precisa? Eles podem ser goblins? Em que ponto um patriarca alcança o status de “santo”? Etc.). Jogando por um período longo o bastante, surgem eventos que estão muito fora do escopo do texto instrucional... e muitas vezes essas coisas capturam nossa imaginação com muito mais “força” do que o estudo das diferenças entre armas de haste.

E quando a “contagem de feijõezinhos” [bean counting] das regras reais atrapalha essas “coisas mais interessantes”, bem, o que você acha que acontece com elas? Elas caem fora, é claro... empurradas para o lado. Assim caminha. E as pessoas começam a perguntar “por que meu mago não pode usar uma espada?” E talvez você invente uma mecânica para isso (talento de proficiência de arma marcial, alguém?). Ou talvez não. Talvez você não se importe que uma corrida de cerveja [beer run] esteja abaixo da dignidade de personagens de 8º nível. Talvez você apenas ache que uma corrida de cerveja (com necromantes) parece uma aventura paralela divertida. D&D é o “jogo de qualquer coisa”, certo? E você certamente pode desviá-lo [drift] como quiser. As pessoas fazem isso há décadas antes da edição atual de D&D ser publicada.

Então qual é a diferença? Aqui está a diferença: embora o “desvio” [drifting] do jogo tenha existido desde os dias primordiais de D&D (em parte por causa da forma como as regras originais, incompletas, se espalharam de maneira incompleta), a decisão de desviar [drift] ou não o jogo (e como o jogo era desviado [drifted]) ficava restrita aos grupos de jogo individuais. Um novo grupo, indo à loja e pegando um conjunto de regras, começaria com um texto instrucional (orientado por jogadores veteranos... ou não) e então seguiria seu próprio caminho. Em isolamento.

Agora temos a internet.

AGORA temos “plataformas de mídia social.” Agora temos vídeos de streaming. Agora temos cabeças falantes discutindo suas teorias de jogo desviado [drifted] desenvolvidas (talvez) como estilo/preferência pessoal e promovendo-as como o método verdadeiro ou correto de jogar. E temos jogadores aprendendo a jogar a partir dessas fontes porque:

A) uma atitude laissez-faire por parte das editoras principais (ei, jogue como quiser... apenas nos pague),
B) um texto instrucional que não é escrito para acessibilidade (grande demais, recheado demais, para uma base de fãs que... vamos encarar a realidade de nossos tempos... não está muito a fim de ler instruções),
C) um sistema de regras que... pelo menos desde 1989... tem enfrentado amplamente problemas de incoerência. Esse é outro termo “Forge-ano” (desculpem), que, neste contexto, vou definir como “esboçar uma prioridade de jogo sem fornecer um sistema de regras que apoie essa prioridade.”

POR EXEMPLO: afirmar que D&D é sobre criar e contar histórias [5] sem fornecer ferramentas (regras, mecânicas de jogo) que permitam aos jogadores abordar premissas, criar e controlar arcos de trama, ou que estão sobrecarregadas de minúcias de simulação (quantas moedas uma mochila comporta? quanto dano uma espada longa causa?... em vez de decidir se uma luta — e o resultado dela — avança a história sendo contada naquele momento particular).

A incoerência no design acaba levando a desviar [drifting] um sistema para “outra coisa” (veja a definição de “Drift” acima: não apenas desconsiderar regras “inconvenientes”, mas também ignorar ou “manipular” [fudging] resultados de dados que não apoiam o resultado preferido... seja “diversão”, “contar uma boa história” ou ambos!). E enquanto uma mesa individual desejando desviar [drift] seu jogo (como a minha fez, naquela época) está TUDO BEM (ainda que um pouco bobo... existem outros jogos DESENVOLVIDOS para fazer essas coisas), apresentar o jogo desviado [drifted] como “o jogo apropriado” (e promovê-lo como tal) é problemático por vários motivos:
  • Confunde e atrapalha iniciantes (não é uma forma de fazer o hobby crescer)
  • Fratura e polariza a comunidade de jogo.
  • Impede a inovação real (existem OUTROS jogos para jogar).
  • Promove uma atitude de quebra de regras (isso se espalha para outras áreas).
  • Ignora aquilo que o sistema faz bem.
E, para mim, esse último ponto é o que espero abordar no meu próximo post: voltar ao que D&D realmente é, e alguns dos elementos do jogo que deveríamos promover.

[um último ponto: o surgimento da internet e a facilidade com que indivíduos agora podem publicar seu próprio material de jogo... especificamente aventuras e suplementos... também é um grande problema, quando as publicações são baseadas em compreensão fraca e/ou jogo desviado [drifted]. Esses módulos e suplementos fornecem parte do texto pelo qual jogadores e MJs aprendem o jogo... seguindo os exemplos dos outros!... e se forem escritos de maneira incoerente, podem levar a ainda mais frustração e mal-entendidos]

Mais depois.

∞ BlackRazor ∞


* Este texto faz parte de uma sequência que pode ser conferida aqui.
** "Drift" pode ser traduzido de várias maneiras. Uma opção é "deriva", assim, tudo que foi traduzido aqui como "desvio", poderia ser traduzido como "derivar", "derivado", "deriva", etc. Mas optei por "desvio" mesmo, pois acredito que vai mais ao encontro do sentido do texto.

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