(Tradução, com permissão do autor, do texto presente no suplemento para a primeira edição de AD&D, The Heroic Legendarium [1], publicado por Trent Smith em 2021. Agradecemos imensamente a gentil cortesia do autor)
Um dos problemas mais comuns e desafiadores que surgem para mestres de jogo (MJ) é como lidar com conflitos entre membros do mesmo grupo de jogadores ou da mesma equipe de aventureiros. Embora algum nível de rivalidade e competição entre os jogadores e seus personagens seja esperado, e pequenas discussões e discordâncias acrescentem sabor à interpretação quando tudo é feito de forma saudável, esses conflitos também podem crescer, criar raízes e escalar a um ponto em que os personagens (ou jogadores) não conseguirão ou não estarão dispostos a participar das mesmas sessões. Isso é um problema, a menos que o MJ esteja disposto a conduzir várias sessões com grupos de jogadores diferentes (o que, na prática, dobra ou triplica seu próprio compromisso com a campanha). Tais conflitos podem até levar à violência entre PJ-vs-PJ, o que quase sempre deve ser fortemente desencorajado, senão completamente proibido, pois não apenas descarrilha a campanha como também cria um ambiente muito tóxico entre os jogadores. Há várias razões pelas quais conflitos internos ao grupo tendem a surgir, cada uma exigindo diferentes tipos de abordagem, e são discutidas a seguir.
Raças Incompatíveis: Esta é a fonte mais óbvia e direta de conflito interno, mas também a mais fácil de lidar. Elfos e anões não gostam uns dos outros, meio-orcs e meio-ogros geralmente odeiam (e são odiados por) outras raças semi-humanas, as chamadas raças do "sunterrâneo" [“underdark”] (drow, gnomos das profundezas e anões cinzentos) são temidas e odiadas por todas as raças da superfície, dhampirs são universalmente abominados, e assim por diante. Esses tipos de conflitos são normalmente questões de interpretação que não exigem muita atenção do MJ, já que dificilmente vão escalar ou transbordar para conflitos entre jogadores. A forma como isso pode (e deve) acontecer é semelhante ao relacionamento entre Gimli e Legolas em Tolkien — frio e desconfiado no início, desenvolvendo-se em uma espécie de rivalidade amigável e eventualmente florescendo em uma amizade plena. PJs individuais podem ser exceções às tendências gerais de suas raças, mas o processo deve ser gradual e, ao menos quando personagens de raças incompatíveis se encontram pela primeira vez e começam a trabalhar juntos, eles devem demonstrar algum nível de cautela e desconfiança inicial, aceitando isso (e o processo de crescimento pessoal ao superar preconceitos que isso envolve) como parte do papel que escolheram interpretar.
Alinhamentos Incompatíveis: Esse tipo de conflito também é comum e óbvio, mas pode ser mais difícil de resolver porque alguns jogadores não o reconhecerão como um conflito de papéis e opiniões dentro do jogo, interpretando-o de forma mais pessoal (pois terão escolhido um alinhamento que corresponde, ainda que subconscientemente, às suas crenças na vida real e podem ter dificuldade em aceitar outros pontos de vista como legítimos). Com nove opções de alinhamento para personagens, é muito improvável que todos os membros do grupo tenham o mesmo alinhamento, e podem existir diferenças radicais. É mais provável que entrem em conflito ao discutir como tratar prisioneiros, como dividir tesouros, como se comportar na cidade e a importância geral da coesão do grupo versus a individualidade. Quando as diferenças recaem sobre o eixo lei-caos ou entre personagens bons e neutros, os conflitos resultantes não tendem a escalar a um nível que precise ser tratado pelo MJ — os jogadores (e seus personagens) devem ter liberdade para discutir, brigar e resolver suas diferenças — mas você deve observar essas discussões para ver se permanecem em um nível de interpretação amigável e parte do jogo, ou se estão transbordando para um conflito mais tóxico e perigoso entre jogadores (ver abaixo).
Alguns jogadores insistirão, de forma contundente, que todos os membros do grupo devem sempre estar em sintonia — que todos sigam o mesmo plano e submetam-se à autoridade do líder do grupo (incluindo, por exemplo, quais feitiços os conjuradores devem memorizar e quando devem usá-los), que sempre sejam completamente francos e honestos uns com os outros, que todo o tesouro seja dividido de maneira totalmente igual sem desvios secretos e que agir dessa forma é um requisito obrigatório para o sucesso no jogo. Essa é uma posição perfeitamente razoável para um personagem ordeiro adotar, mas se houver personagens caóticos no grupo, eles provavelmente verão a situação de forma diferente, e têm o direito de não se deixarem intimidar pelos outros jogadores caso não desejem. Não é papel do MJ intervir e tomar partido nesse conflito, exceto para prevenir bullying entre jogadores (isto é, quando um ou mais jogadores agressivos pressionam jogadores menos assertivos de uma forma que claramente está estragando a diversão deles). Se o grupo concordou em dividir o tesouro igualmente, mas o ladrão mesmo assim lhe passa um bilhete dizendo que está desviando secretamente uma parte extra, você não deve impedir esse jogador de fazê-lo, nem deve impedir os outros jogadores de retaliar se descobrirem.
Quando os conflitos de alinhamento ocorrem no eixo bem-mal, eles tendem a ser mais problemáticos — personagens malignos quase certamente farão coisas que personagens bons consideram intoleráveis (especialmente no tratamento de prisioneiros), e isso não deve ser ignorado ou varrido para debaixo do tapete em nome da harmonia entre jogadores na mesa. Embora personagens malignos (pelo menos os não caóticos) possam se conter para cooperar com um grupo geralmente não maligno por algum tempo, a serviço de algum objetivo egoísta ou de longo prazo (como quando os personagens não malignos são peões inconscientes de um plano que acabará servindo a propósitos malignos), essa não é uma situação estável ou viável a longo prazo e, no fim, se existirem personagens bons e malignos no mesmo grupo, eles terão de jogar separados na maior parte do tempo (com personagens neutros podendo se associar a qualquer um dos lados). Por essa razão, a menos que você esteja disposto e apto a conduzir sessões paralelas, é seu direito insistir que os jogadores escolham alinhamentos compatíveis para seus personagens, o que normalmente significa nenhum PJ maligno (embora, dependendo da composição do grupo, possa significar nenhum PJ bom).
Mais um subcaso de conflito de alinhamento que merece menção ocorre quando o grupo inclui clérigos de alinhamentos ou religiões diferentes, ou mesmo apenas um clérigo cujo alinhamento ou religião difere do de alguns outros PJs. Nesse caso, é apropriado (e até certo ponto obrigatório) que os clérigos evangelizem e defendam seu alinhamento e religião, especialmente quando seus serviços (isto é, curas e outros feitiços) são solicitados. Se um clérigo for chamado para ajudar alguém de alinhamento ou religião diferente, é adequado que espere algum tipo de serviço ou respeito em troca (como participar do próximo culto no templo daquele deus). Clérigos bons devem geralmente impor essas condições com base na honra, pelo menos da primeira vez, mas clérigos neutros podem exigir promessas (ou até provas tangíveis de obrigação) antes de prestar serviços, e clérigos malignos dificilmente fornecerão ajuda a personagens de alinhamentos diferentes, pelo menos não sem condições pesadas e desagradáveis. Clérigos que se comportam dessa maneira incomodam alguns jogadores, que insistem que a cooperação entre jogadores deve prevalecer sobre lealdades internas do jogo e que um clérigo agindo assim está sabotando a eficácia do grupo. Essa é uma opinião, mas a réplica do clérigo é que, se a coesão do grupo é tão importante, ela pode ser alcançada se todos no grupo se alinharem ao alinhamento e à religião do clérigo, eliminando assim o conflito e a necessidade de evangelizar ou exigir promessas em troca de serviço. Existe uma tendência de que os jogadores menos assertivos acabem “presos” jogando como clérigos e sejam tratados pelos outros jogadores como servos — fornecendo ajuda e assistência para tornar os personagens deles mais eficazes. Apoiar jogadores de clérigos que adotem uma postura mais assertiva, não permitindo que os outros os intimidem ou dominem, pode ajudar a equilibrar essa dinâmica de poder interpessoal e a desenvolver mais confiança nesses jogadores menos assertivos.
Classes Incompatíveis: Certas classes também são projetadas para serem incompatíveis entre si, especificamente bárbaros vs. usuários de magia, cavalheiros vs. personagens de baixa classe social (particularmente ladrões) e paladinos vs. qualquer personagem que não seja bom. Embora essas situações sejam amplamente semelhantes aos casos de raças ou alinhamentos incompatíveis, e geralmente possam ser tratadas no nível da interpretação sem necessidade de intervenção do MJ, elas são potencialmente mais problemáticas porque são “mais rígidas”; ao contrário de incompatibilidades raciais, os jogadores não devem simplesmente declarar que seus personagens superaram seus preconceitos e agora estão dispostos a trabalhar juntos sem conflito.
Os bárbaros são os mais simples — eles simplesmente odeiam e desconfiam de toda magia, jamais se submeterão voluntariamente a feitiços ou itens mágicos (exceto magia clerical de baixo nível — principalmente cura) e sempre preferirão ações e planos que dependam de suas próprias habilidades naturais em vez dos atalhos fornecidos pela magia. Serão arrogantes e desdenhosos com todos os conjuradores, incluindo outros PJs, vendo-os como fracos e desprezíveis. Essas diretrizes são apenas orientações de interpretação, com a única diferença de que, ao contrário de outros traços e maneirismos de personalidade, são obrigatórias e imutáveis — todos os personagens da classe bárbaro possuem essas visões, e devem mantê-las mesmo que sua personalidade se desenvolva de outras maneiras. Um bárbaro ainda pode se aventurar no mesmo grupo que personagens usuários de magia (corrigindo um equívoco comum), apenas sempre se comportará de maneira teimosa e desagradável com eles, e esses personagens provavelmente passarão a ver o bárbaro como um incômodo, revirando os olhos e rindo às escondidas, mas ainda assim tolerando-o por causa dos outros benefícios que ele traz ao grupo.
Cavalheiros são semelhantes, no sentido de que são esnobes e desprezam personagens de classes sociais inferiores, além de serem obrigados pela honra a atacar inimigos de forma ousada e justa, evitando e rejeitando furtividade, truques e ataques sorrateiros — ou seja, tudo o que ladrões fazem. Isso é mais difícil de resolver do que o caso dos bárbaros porque não se trata apenas de tiques de interpretação irritantes, mas de um conjunto totalmente incompatível de abordagens aos desafios do jogo — um cavalheiro e um ladrão terão dificuldade em funcionar lado a lado no mesmo grupo. Embora as circunstâncias possam exigir que encontrem uma maneira de trabalhar juntos por um tempo limitado em busca de algum objetivo específico, a longo prazo é provável que esses dois tipos de personagens precisem aventurar em grupos separados. Mesmo que estejam, teoricamente, no mesmo grupo, provavelmente operarão separados, deixando um jogador de lado e entediado enquanto o outro age — o jogador do cavalheiro sentado sem fazer nada enquanto o ladrão explora, se infiltra e reúne informações, e depois o jogador do ladrão sendo deixado de lado enquanto o cavalheiro lidera um ataque frontal em grande escala. Isso é algo que deve ser discutido e resolvido no início do jogo, durante a criação dos personagens, para garantir que as expectativas dos jogadores estejam alinhadas e que seus personagens serão compatíveis (assumindo que precisarão aventurar juntos porque você só pode ou quer conduzir um único grupo). Vale notar que a classe do bobo da corte [jester] (nova neste volume [The Heroic Legendarium]), foi criada pelo menos em parte para lidar com essa questão, atribuindo muitas das habilidades e capacidades de jogo da classe ladrão a um tipo de personagem que não apenas é aceitável como também fortemente associado ao arquétipo do cavalheiro. Se os jogadores decidiram como grupo que serão orientados ao cavalheirismo, então o papel de “ladrão” no grupo deve ser preenchido por um bobo da corte.
Paladinos combinam os pontos acima sobre cavalheiros com uma restrição firme e imutável contra se associar com personagens que não sejam bons, incluindo outros PJs. Personagens de alinhamento neutro só podem ser parceiros em missões únicas nas quais o objetivo seja explícita e especificamente alcançar fins ordeiros e bons (ou seja, não apenas coletar tesouros por si só), e personagens malignos nunca podem ser associados sob qualquer circunstância. Não há margem para atenuações ou flexibilidade aqui, então isso deve ser tratado no nível dos jogadores no momento da criação do personagem. Se o MJ está conduzindo apenas um grupo e um dos personagens desse grupo é um paladino, então os outros personagens do grupo precisam ser todos bons, ou neutros sob as condições extremamente limitadas descritas acima. E se os outros jogadores não estiverem todos dispostos a concordar com isso, então simplesmente não pode haver um paladino no grupo, e esse jogador precisará criar outro personagem.
Jogadores Incompatíveis: A outra principal fonte de conflito dentro do grupo é a mais difícil de resolver, e é a de jogadores que simplesmente não se dão bem. Infelizmente, não há solução fácil aqui, e se esse for o caso não existe nada dentro do jogo que possa corrigir isso. Se ambos os jogadores gostam de jogar e gostam da companhia e se dão bem com todos os outros jogadores, então espera-se que possam ser maduros o suficiente para deixar suas diferenças pessoais de lado tempo suficiente para continuar jogando juntos e evitar que seu conflito afete a atividade do jogo (por exemplo, personagens sabotando passivo-agressivamente uns aos outros dentro do jogo, ou jogadores interrompendo o jogo para discutir entre si), mas isso nem sempre acontece. Como MJ, você precisa reconhecer quando dois (ou mais) jogadores não conseguirão conviver bem, e se for o caso precisará tomar alguma ação antes que essa toxicidade arruíne o jogo. Se você puder conduzir múltiplos grupos separados, isso pode resolver a questão, mas se não for uma opção, provavelmente pelo menos um dos jogadores problemáticos precisará deixar o grupo. Quem deve sair e como essa separação deve ocorrer está além do escopo deste ensaio, e você provavelmente vai querer consultar os outros jogadores (os que não estão em conflito) para ouvir suas opiniões, ou ao menos notificá-los, antes de remover alguém do grupo, em vez de agir unilateralmente. Mas é melhor ser proativo mesmo em uma situação desconfortável do que ignorá-la, permitindo que cresça, apodreça e envenene todo o grupo, potencialmente prejudicando amizades reais fora do jogo.
∞ Trent Smith ∞
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1. https://www.drivethrurpg.com/en/product/357539/the-heroic-legendarium-a-first-edition-adventure-gaming-companion
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