(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em março de 2024)
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Alguns comentários de Anthony Huso envolvendo o assunto regras & arbitragens, incluindo um pouco sobre o famoso "Rulings not Rules"... |
Sou designer de videogames há 14 anos e a razão pela qual amo a 1ª edição de AD&D é porque ela NÃO é um videogame. Ainda assim, existe uma grande interseção na disciplina de design de jogos e, se aprendi uma coisa em 14 anos, é que jogos têm regras.
Os jogadores muitas vezes recebem privilégios que lhes permitem dobrar ou quebrar essas regras, o que é fantástico para eles. Mas as regras ainda formam o sistema confiável contra o qual os jogadores fazem suas apostas.
O RNG (ou dados), a exploração, as partes desconhecidas, combinados com as infinitas reações às escolhas dos jogadores, são o que acrescenta todo o tempero.
Enquanto o xadrez é um jogo que testa o quanto a mente humana pode se assemelhar a um computador, um sandbox (como o AD&D) pede tanto aos jogadores quanto ao árbitro que abracem a entropia simulada do universo, ao mesmo tempo em que fundamentam a experiência em um conjunto extenso de regras. Há uma sensação luxuosa em participar de tal simulação e saber que, por causa de todas as escolhas individuais a cada rodada, combinadas com todas as rolagens de dados, as coisas poderiam ter acontecido de muitas formas diferentes… e que pode haver, de fato, muitos outros universos onde isso aconteceu.
Esta primeira nova postagem no blog foca em um dos vários valores centrais que uso para conduzir jogos de sucesso, sendo o princípio “Regras acima de Arbitragens”. Provavelmente um título mais sensacional do que o necessário, mas deixe-me explicar.
Todos os jogos que joguei devem sua grandeza (ou falta dela) às suas regras. Em jogos com árbitros, um ruim pode estragar um jogo que seria ótimo. Um excelente árbitro pode elevar um jogo medíocre.
No seu próprio jogo OSR, você sabe o que funciona se tiver jogadores regulares.
Esse é o ponto de referência que realmente importa, e o que se segue é uma mera MANEIRA de pensar sobre arbitrar. Isso fez com que muitos jogadores (do ensino médio à faculdade e agora na meia-idade) elogiassem meu estilo, enquanto provocou desprezo em apenas um pequeno punhado de detratores.
Na minha opinião, a característica em comum entre os detratores é uma visão que pode ser resumida da seguinte forma: “Sempre tem algo que é ruim. Meu herói nunca é o melhor ou não pode ter nada que seja puramente incrível.”
Vou deixar essa crítica de lado para esta postagem em particular e, em vez disso, começar minha discussão sobre regras dizendo que elas não são a coisa mais importante.
Existem outras duas coisas que vêm primeiro.
Primeiro, o jogo exige justiça. E segundo, os jogadores suplicam por misericórdia. Por mais que você tente, não há como criar um equilíbrio perfeito em qualquer sistema, muito menos no OSR — que nunca buscou o equilíbrio como princípio de design [2]. Gary disse, acredito, que os jogadores deveriam ter 70% de chance de sobrevivência, mas SENTIR que têm 30%. E esse é o princípio fundador dos meus jogos. É também a única tentativa de “equilíbrio” que faço.
Antes, meu mantra é este:
1) Eu amo o jogo. 2) Eu amo meus jogadores. 3) Eu respeito as regras.
Essa é a hierarquia correta (para mim). Se o jogo (como um todo) não for colocado em primeiro lugar, seus jogadores se tornarão preguiçosos e mimados. Se os jogadores não forem colocados em segundo lugar, terão justificativa para se sentirem assim. Finalmente, se as regras não vierem em terceiro, sua reputação diminuirá, pois a consistência será substituída por arbitragens vistas, em retrospecto, como arbitrárias.
Note que você, o MJ, não está na lista de prioridades. Sua importância e seus sentimentos no assunto são uma reflexão tardia. Como disse o Gênio em Aladdin: “Poder Cósmico Fenomenal, Espaço Vital Minúsculo.”
Seu trabalho não é ingrato. Mas seus poderes estão acorrentados ao credo, que você quebra por sua própria conta e risco. Sua gratificação é adiada. Se você comer o marshmallow na sua frente (caso não tenha percebido, esse marshmallow é o seu poder de fazer qualquer coisa que queira), provavelmente será o último que terá para comer. Mas se prender-se ao mantra acima, ganhará um monte de marshmallows no futuro.
Esses marshmallows futuros consistem em ouvir seus jogadores se gabando, não sobre seus personagens, mas sobre as experiências que tiveram na sua mesa. Seus marshmallows são o fato de que os jogadores falam e riem sobre o seu jogo entre sessões, aparecem como fanáticos religiosos sem precisar de lembrete e se engajam ativamente em vez de ficarem no celular (ou bêbados).
Esta postagem é principalmente sobre o ponto três do mantra, mas um resumo dos outros dois é útil.
- Eu amo o jogo porque conheço o mundo intimamente. Sei das portas secretas que o grupo perdeu e dos tesouros deixados para trás. Sei por que o PNJ está agindo de forma estranha. Sei de todas as coisas que os jogadores não sabem e tenho prazer em saber. Tenho prazer em o mundo fazer sentido e no sentido da criação do mundo. Tenho prazer em o mundo ser justo, no sentido de que (como qualquer outro mundo) ele é igualmente injusto para todos os jogadores. E, por fim, tenho prazer em haver desvantagens para a maioria das vantagens e um espírito de compromisso em tudo, o que torna a escolha dos jogadores valiosa e significativa.
- Eu amo os jogadores porque quero que tenham sucesso e porque são meus amigos. Eu me importo com os sentimentos deles e compartilho das derrotas. A contagem de corpos é alta na minha campanha, pelo menos 30 personagens mortos nos últimos 4 anos. Ainda assim, alguns dos muitos personagens no estoque chegaram ao nível 7 nesse tempo. Quando um morre, um novo é criado para ocupar o lugar. Dou presentes aos meus jogadores. Às vezes há prêmios a serem conquistados. No nosso aniversário, faço churrasco de bifes na grelha. Meus jogadores sabem que eu os amo porque mostro que, MESMO COM DESAFIOS LETAIS, todos estão em pé de igualdade com o jogo e com as regras. Os dados são rolados abertamente sempre que possível, para que todos possam assistir à fortuna sendo ganha ou perdida.
- Em terceiro lugar, eu respeito as regras porque elas são a fundação do meu jogo. São regras acordadas, mesmo que algumas não sejam perfeitas. São previsíveis e, portanto, vistas como justas. Sua implementação e adesão também são consistentes, e é por isso que cobertura total, rajadas de flechas, testes de system shock e golpes esmagadores têm significado. Escudos são quebrados. Livros de feitiços são destruídos pelo fogo. Personagens perecem nas terras áridas sem água. E as regras não se importam. As regras são implacáveis e, portanto, carregam a culpa quando os personagens morrem, deixando-me em grande parte ileso. As regras devem ser memorizadas sempre que possível ou dispostas em telas práticas. Não devem ser procuradas durante o jogo, a menos que isso seja minimamente intrusivo. É fardo do MJ conhecer as regras de cabo a rabo e segui-las de perto.
Seguindo as Regras
Admito que eu não gosto muito da frase descontextualizada “Arbitragens em vez de Regras!” [Rulings instead of Rules]. Arbitragens, na minha opinião, são necessárias para cobrir todas as formas de criatividade dos jogadores que NÃO estão contempladas nas regras.
Exemplo: Durante o assalto em WG4, o ranger (vestido com um conjunto único de armadura contendo asas) decidiu transportar pelo ar um dos trolls abatidos para fora do templo superior e jogá-lo no desfiladeiro — em vez de gastar óleo e tempo com ele durante o combate atual. No caminho para largar o troll no abismo, foi avistado um troll gigante retornando pela passarela (após ter perseguido o usuário de magia). O ranger perguntou se poderia tentar derrubar o troll que carregava em cima do troll gigante abaixo e, assim, jogá-lo para fora da ponte estreita.
“Claro”, respondi. “Mas, devido ao peso do troll (apesar da grande força do ranger), aos problemas de mira, trajetória e assim por diante; além da força do troll gigante; vou arbitrar que você só conseguirá realizar essa loucura com um 19 ou 20.”
Ele rolou um 19 e a sala de jogo explodiu em aplausos.
Para todo o resto, há uma regra.
Não exatamente, mas quase sempre.
Em partidas muito casuais, usando sistemas rules-light, um pouco da essência de jogo pode ser encontrada em um ritmo constante de arbitragens — mas esse não é o tipo de jogo que eu gosto, porque sob tais condições se torna difícil avaliar minhas chances de sucesso. Torna-se, em vez disso, como aqueles livros mal feitos de escolha-sua-própria-aventura, em que você escolhe a opção inteligente mas falha em adivinhar o que o autor tinha em mente e, por isso, morre de forma horrível.
Ou seja, se Deus fizesse arbitragens a cada passo da minha vida, eu teria dificuldade em aprender algo com meus fracassos ou em fazer planos inteligentes para o futuro. Mas, tendo aprendido algo de física nos últimos 48 anos, posso escolher sabiamente uma abordagem diferente para coisas que poderiam ter terminado mal na minha juventude. Não preciso me preocupar com um poder caprichoso mudando a forma como o mundo funciona de uma experiência de vida para outra.
A beleza do AD&D está nas muitas regras em que se pode confiar. A feiura está em sua organização e às vezes na forma instável como aparecem nas edições incrementais dos livros. Ainda assim, as bases para resolver situações recorrentes são de tanto valor que, uma vez superado o fardo de memorizá-las (ou colocá-las em um bom escudo do Mestre, se sua memória for como a minha), o respeito que você conquista como árbitro será palpável.
Memorizar tabelas que são de interesse constante para os jogadores renderá ainda mais respeito, e eu recomendo investir pelo menos tanto tempo memorizando seu conjunto de regras escolhido (pelo menos no início) quanto você investe em criar seu mundo e aventuras.
Novo Jogador: “Posso comprar uma armadura? Quanto custa?”
Eu: “Você pode usar os preços listados nas páginas 35 e 36 do Player’s Handbook.”
Novo Jogador: “Uau.”
Só o fato de saber que os tempos de conjuração de muitos feitiços de Usuário de Magia correspondem ao seu nível pode fazer parecer que você tem memória fotográfica. Mas o objetivo não é ostentar. O objetivo é aderência e, por meio da aderência, confiança.
Seus jogadores vão confiar em você. Especialmente se você admitir quando cometeu um erro e perguntar a eles coletivamente (antes de fazer uma arbitragem) se a arbitragem parece justa.
Em resumo: torne as regras claras e acessíveis. Reserve arbitragens para o que as regras não cobrem. Pause qualquer jogo para esclarecer uma regra que vai aparecer mais de uma vez e sinalize as implicações das regras (vulgo, perigo) por meio da narrativa.
Exemplo: Em vez de pedir uma jogada de proteção surpresa quando o grupo está discutindo, diga: “Vocês estão reunidos a uns 3 metros da porta aberta de uma sala inexplorada. Lá dentro está escuro.”
Você pode pensar que está entregando o jogo, mas os jogadores não podem saber o que você sabe e podem até suspeitar de uma distração. Quer os gárgulas se esgueirem por trás dos jogadores distraídos e acabem com eles em um TPK ou não, você terá coberto suas bases. E quando não houver perigo, os jogadores ficarão ainda mais envolvidos no jogo porque você está explorando o medo deles. (Esses são os momentos em que os MJs rolam os dados apenas pelo som que fazem).
No fim das contas, seus jogadores vão respeitar você porque você os amou o bastante para ser justo quando as regras que eles deveriam ter previsto estão os matando. Veja, quando o juiz é bom, não é culpa dele que o quarterback tenha sido derrubado e seu time perdido. O árbitro fez bem. As regras são as regras, e elas se banham em sangue enquanto as pessoas (incluindo o MJ) participam de uma experiência puramente cooperativa.
No próximo post do blog, talvez eu enfrente o argumento dos meus detratores: por que artefatos têm desvantagens, por que ladrões são péssimos e por que seu personagem de OSR provavelmente vai morrer.
∞ Anthony Huso ∞
∴
1. https://www.thebluebard.com/blog/rules-over-rulings
2. https://dustdigger.blogspot.com/2025/07/sobre-o-balanceamento-de-jogo.html
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