sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Jogo de Nível Alto, Parte 2: Mecânicas

(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em abril de 2024)

Desta vez, Anthony Huso fala um pouco sobre os aspectos mecânicos relacionados ao jogo de nível alto nesta sequência de suas exposições sobre o tema ...

Enquanto trabalho naquele post de blog há muito prometido, que dará início a uma série sobre meu cenário de campanha, pensei em fazer uma análise mais detalhada de como lidar com aventuras de nível alto (para personagens de 9º nível ou superior).

Se você não leu meus outros posts detalhados sobre AD&D [2], sobre combate e afins, este aqui pode soar confuso, porque vou presumir que você já entende segmentos, fator de velocidade [speed factor] e todo o outro “lixo” que venho usando religiosamente nos últimos 5 anos (nosso aniversário foi em 27 de julho — então agora estamos entrando no 6º ano). Sim, ainda tenho 6 jogadores que vêm às sessões com a mesma fidelidade com que mórmons vão à igreja.

Alguns MJs registram o que cada personagem carrega e quanto dinheiro têm. Eu não faço isso. Primeiro, porque dá muito trabalho; segundo, porque acho meio insultante. Treinei meus jogadores desde o nível 0 (sim, alguns começaram como humanos de nível zero) para levarem a sério o registro de informações. Faço isso perguntando coisas espontaneamente, como: “Quantas flechas você ainda tem?” “Quantos faunos [objetos de valor monetário; moeda] restaram depois de comprar o jantar?” “Quanto sua mochila está pesando depois de pegar essa barra de ouro?” E assim por diante.

Combino isso com jogadas abertas e honestidade e responsabilidade da minha parte. Assim, os jogadores conseguem ver claramente (embora às vezes só depois da batalha) por que os resultados foram o que foram. Esse formato gera respeito e honestidade, de modo que não preciso me preocupar com detalhes dos personagens.

Por que isso é importante?

À medida que os personagens atingem níveis altos, tornam-se máquinas complexas com muitas habilidades, itens mágicos e feitiços de efeitos poderosos. Não apenas é demais para eu acompanhar, como também é demais para o jogador “casual” médio! Já disse muitas vezes aos meus jogadores que a principal causa de morte de um personagem de nível alto não é monstro nem armadilha. Mas sim porque o jogador vai esquecer alguma habilidade, item ou feitiço que poderia tê-lo ou tê-la salvado e — na minha campanha, como no xadrez — quando você tira a mão da peça, não há volta.

“Ah, então eu não teria feito isso…”
“Posso voltar atrás?”
“Mas eu não sabia que isso ia acontecer.”

Desculpe, amigo. Aqui jogamos pra valer. Agora você sabe o que acontece quando lança Bola de Fogo em um corredor! E sim, todos aqueles itens mágicos que não passaram na jogada de proteção foram destruídos, inclusive o tapete voador que seu colega carregava. Todos os seus camaradas estão de lábios cerrados agora, olhando pra você… mas também estão pegando leve, porque esta é sua primeira vez jogando esse tipo de jogo. Não se preocupe, é um momento memorável. E aquelas são as razões porque jogamos. Você vai pegar o jeito, e ainda terá muitos momentos que terminarão a seu favor.

Responsabilidade é essencial em jogos de nível alto porque os personagens são tão poderosos que inevitavelmente VÃO perceber tarde demais que poderiam ter feito algo diferente para se salvar. Embora caiba a você, o MJ, decidir quando abrir exceções e quando ser firme, eu sigo um protocolo em que peço a cada jogador por vez que declare suas intenções antes da iniciativa. Também costumo pedir confirmação antes de resolver as ações declaradas. Como faço isso o tempo todo, pedir confirmação não é necessariamente um “sinal” de que algo ruim está para acontecer.

Mais uma vez, o objetivo é projetar um teatro de justiça, onde os personagens se comprometem com um curso de ação e aguardam você dizer como ele se resolve.

Já fiquei em silêncio como jogador em muitas mesas onde a rodada de combate vira uma cacofonia de jogadores gritando para o MJ, alterando ações, se gabando e rindo no meio do caos. Embora o riso na mesa seja excelente — assim como os gritos de alegria —, a ordem PRECISA ser mantida, e a rodada DEVE se resolver dentro da sequência consistente ditada pelas regras: segmentos e o julgamento justo do MJ.

Como sempre digo: se você está se divertindo, está fazendo certo. Mas se o MJ cobra dos jogadores responsabilidade por suas declarações, as escolhas (e as vitórias resultantes) terão um sabor especial E personagens de nível alto deixarão de enlouquecer, recuando, mudando ações e, assim, destruindo o drama do combate de alto risco.

Passei um bom tempo discutindo esse ponto, que pode parecer misterioso para quem nunca viu o caos de uma mesa mal administrada em níveis altos. É preciso treiná-los desde pequenos, para que, quando chegarem ao 9º nível ou mais, pensem bem antes de agir, sintam preocupação em vez de arrogância, escolham cuidadosamente entre seus recursos disponíveis, em vez de dominar seu jogo como crianças barulhentas.

O caminho natural para discutir como manter a ordem é recapitular a rodada de combate de que falei em um post muito anterior [3] e mostrar minha versão atual do rastreador de rodadas de combate.

Perceba o novo espaço em branco que sustenta os segmentos de cada rodada. Isso me permite anotar, a lápis, as declarações à medida que são anunciadas e depois desenhar setas até o segmento em que elas serão resolvidas após a rolagem de iniciativa [ou] após outras circunstâncias atenuantes (como movimento antes de lançar um feitiço).

Exemplo:

Mago: “Vou lançar Bola de Fogo. Depois do feitiço, quero usar minha Varinha de Relâmpagos nos ogros que estão atirando pedras em nós pelo sul, então provavelmente vou precisar me mover para alinhar isso”

MJ: “Ok. Anotado.”

Todos os outros jogadores farão declarações semelhantes. Eu geralmente faço minhas declarações em silêncio, anotando o que os monstros vão fazer. Mas, se os monstros tiverem ESP ou poderes semelhantes, reagirei às declarações dos jogadores como se os monstros pudessem ler suas mentes. O mesmo vale se os PJs tiverem ESP. Nesse caso, declararei as ações dos monstros primeiro e depois deixarei os jogadores responderem.

Seres muito poderosos, como deuses, quase sempre terão conhecimento prévio das declarações dos PJs, e, em alguns casos, tornarei o blefe ou a mentira impossíveis, mantendo os jogadores presos às intenções declaradas e informando-os de que a enganação é impossível no momento.

Esses parâmetros às vezes alteram o equilíbrio do jogo e colocam até mesmo personagens de nível alto na defensiva.

Como o jogo de nível alto envolve guerreiros realizando múltiplos ataques, o MJ que supervisiona esse combate deve lembrar que o fator de velocidade [speed factor] da arma é usado apenas em combate arma vs. arma, e que monstros (ou monges) usando mãos, garras ou dentes sempre vencem empates. Assim, em um empate de iniciativa 4 vs 4 entre o grupo e um dragão, o combate se resolveria assim:
  1. Psionismo [Psionics]
  2. Swords of Quickness / Crossbows of Speed
  3. Primeiro disparo de projéteis [flechas, dardos, etc.]
  4. Feitiços com tempo de conjuração [casting time] menor que 4 segmentos (número do dado empatado)
  5. Primeiro ataque do dragão
  6. Primeiro ataque dos tipos guerreiros + ataques de outros personagens
  7. Segundo ataque do dragão
  8. Segundo ataque dos tipos guerreiros (se houver)
  9. Terceiro ataque do dragão (se realmente for seguir o livro à risca [BTB: by the book, segundo o livro]) [ou] uso de item mágico pelo dragão
  10. Disparo final de projéteis e possível uso de itens mágicos pelos PJs
  11. Finalização com movimento residual
Outra opção, ainda dentro das regras [BTB], seria simplesmente agrupar os passos 5 a 9 em uma única troca simultânea de dano.

Além disso, lembre-se de que a criatura com o maior número de ataques por rodada sempre age primeiro (pelo menos com parte de sua rotina de ataque). Portanto, um dragão (BTB) com 3 ataques por rodada SEMPRE vai atacar primeiro, mesmo contra guerreiros com 2 ataques por rodada. Veja o Dungeon Master’s Guide, p. 63, para uma explicação mais detalhada. Embora você possa se perguntar por que isso é importante, a ideia é garantir que o monstro consiga atacar PELO MENOS uma vez antes de cair sob os golpes de guerreiros poderosos com Gauntlets of Ogre Power ou Potions of Giant Strength.

Quando há muitas habilidades especiais, feitiços e ataques com armas — todos se resolvendo em sequência como dominós —, uma única rodada pode durar de cinco a dez minutos reais. Por isso, é uma boa prática rolar os dados de dano ao mesmo tempo que os dados de ataque, para que, se você acertar, já saiba imediatamente o resultado.

O combate em níveis altos também costuma envolver dispositivos e feitiços com as quais tanto jogadores quanto MJs estão naturalmente menos familiarizados (pois são usados com menos frequência do que feitiços como Mísseis Mágicos). Portanto, vale a pena se preparar com antecedência: anote os números das páginas dos feitiços que seus PNJs provavelmente usarão, coloque marcadores nos livros de referência e formule uma estratégia geral de batalha para seus PNJs.

Exemplo: Sam, o feiticeiro maligno, normalmente:
  1. Começa com Mirror Image.
  2. Conjura Charm Person em um ou dois PJs usuários de magia.
  3. Usa Dimension Door para se teleportar até a segurança de uma elevação.
  4. Conjura Lightning Bolt nos personagens lá embaixo e depois troca para sua varinha.
Um plano de ataque como esse ajuda você no calor do momento, permitindo que se concentre nos ataques corpo a corpo e posicione os subordinados de Sam de modo a refletir sua coordenação inteligente e apoio às táticas dele ou [se forem caóticos e estúpidos] a falta disso.
 
Planos desse tipo são apenas esboços de comportamento provável e, é claro, devem ser flexíveis ou até mudarem completamente conforme a batalha exigir. Ainda assim, acho-os extremamente úteis, não só como lembretes do nível de inteligência do monstro, mas também do ambiente e dos recursos que ele tem à disposição. Quando o grupo estiver enfrentando 20 drows e seus animais de estimação, suspeito que você sentirá o mesmo.
 
Então, para resumir, acredito que os mecanismos para manter o drama e o equilíbrio em nível elevado são simples:
  1. Seguir a estrutura das rodadas de combate;
  2. Manter anotações precisas da batalha;
  3. Manter a responsabilidade dos jogadores por suas declarações;
  4. Ter à mão números de página e referências de itens, feitiços e habilidades;
  5. Esboçar a estratégia mais provável para encontros complexos com antecedência, incluindo recursos ambientais e levando em conta inteligência e coordenação.
Fazer essas coisas tem me servido bem, e continua servindo, mesmo em lutas complicadas contra monstros complexos. Lembre-se: em AD&D, personagens de nível alto podem parecer divinos, mas se você seguir as estruturas acima, descobrirá que eles são surpreendentemente vulneráveis às regras do jogo.

Habilidades Especiais

Esta seção é, na verdade, uma resposta ao comentário do Allan abaixo, que merece espaço próprio. Muitas pessoas tentam entender quais habilidades especiais dos monstros são “à vontade” [at will]. Devido à forma como os livros de AD&D foram escritos (sem padronizar muitos dos termos que hoje consideramos padronizados), minha posição é que todas as habilidades e poderes especiais são “à vontade”. Assim, diferentemente dos feitiços memorizados com tempo de conjuração, elas são liberadas a qualquer momento da rodada em que o monstro tenha prioridade, exatamente como Allan descreve: na velocidade do pensamento. O que isso significa, porém, é que aplico a regra de forma geral, por simplicidade, e portanto contradigo algumas percepções mantidas há muito tempo, como você verá abaixo.

Como você talvez saiba pelos meus posts anteriores, minha interpretação da rodada de combate vem do DMG, p. 71, que sugere fortemente que cabe ao arbítrio do MJ decidir quantas ações podem ser realizadas durante os 60 segundos da rodada. Eu normalmente permito que um PJ ou monstro realize todas as quatro ações abaixo em uma única rodada de combate:
  1. Sua rotina completa de ataques [ou] 1 feitiço conjurado [ou] 1 feitiço lido de um pergaminho
  2. Usar um dispositivo mágico
  3. Usar uma habilidade especial
  4. Executar o movimento permitido da rodada
Essas só podem acontecer, porém, durante a porção da rodada em que a entidade tem a iniciativa. Portanto, acredito que lido com habilidades especiais quase exatamente como Allan faz. A seguir estão exemplos de habilidades especiais usadas de maneira correta e legal: e a maioria delas são coisas que aconteceram na minha mesa:
  • O dragão perde a iniciativa, mas ainda assim morde primeiro porque tem 3 ataques por rodada. Isso é visto como uma brecha, não como o dragão realmente possuindo a iniciativa. Portanto, mesmo podendo morder, ele não pode usar seu ataque de baforada até mais tarde na rodada.
  • O dragão ganha a iniciativa. Permito que ele use garra, garra E baforada antes que a prioridade passe para o grupo. Note que esta é uma abreviação da rotina de ataque e ela poderia ser dividida ainda em três ataques separados e titubeantes ao longo da rodada, mas geralmente não vejo motivo para fazer isso. Sim, classificar o sopro do dragão como uma habilidade especial contribui bastante para tornar os dragões os inimigos formidáveis que você sempre quis que fossem.
  • O Demônio perde a iniciativa e está a 90 pés [27 m] dos guerreiros. Os guerreiros investem, mas só têm 2 segmentos para agir (com base nos dados de iniciativa), portanto não alcançam o Demônio antes da mudança de iniciativa. (Eles ainda sofrem as penalidades de investida na rodada seguinte.) Quando chega a vez do Demônio agir, no início do segmento 3, ele se Teleporta Sem Erro diretamente atrás do usuário de magia (instantaneamente) e ataca com todos os bônus de um ataque pelas costas.
  • O demônio ganha a iniciativa, abre um portal e ataca.
  • O grupo perde a iniciativa, o que permite que o wight acerte a clériga no segmento 1. Seu feitiço de Santuary é, portanto, arruinado e ela tem seu nível drenado. Ela não pode atacar porque seu feitiço foi destruído; no entanto, quando chega a vez do grupo, eu permito que ela tente repelir o morto-vivo (ainda que em um nível inferior), pois repelir mortos-vivos é uma habilidade especial que segue minha interpretação mencionada acima.
  • O grupo vence a iniciativa, o que permite que o Paladino toque o guerreiro próximo, curando-o instantaneamente. O paladino então se move 10' [3 m] e ataca o ogro, tudo isso antes que a prioridade passe para os monstros no terceiro segmento da rodada. Como considero a Cura pelas Mãos [Lay on Hands] uma habilidade especial, os jogadores costumam guardá-la para as circunstâncias mais críticas, já que, como Allan diz abaixo, ela não pode ser anulada nem interrompida.
  • O Demônio vence a iniciativa. Está com poucos pontos de vida, assustado e enfurecido. Ataca a clériga uma última vez; acerta e a mata. Como tem 4 segmentos para agir, em seguida usa sua varinha para atingir o guerreiro com uma rajada de gelo. Com um uivo furioso e jubiloso, ele então se Teleporta e desaparece. Não, o grupo não pode realizar um ataque final contra ele enquanto foge vitorioso, pois seu método de fuga foi o uso instantâneo de uma habilidade especial.
Embora o grupo ainda não tenha enfrentado um Poder de status semidivino ou superior, é provável que eu permitisse que tais seres usassem até duas habilidades especiais por rodada da mesma forma descrita acima. Lembre-se de que estamos jogando assim há 5 anos. Posso dizer que funciona maravilhosamente bem, desde que você se lembre de que “o que é bom para a gansa é bom para o ganso” [ou seja, o que vale para um, vale para o outro]. Seja sempre justo, mesmo que isso signifique que seu precioso encontro do chefe seja derrotado de forma desastrosa já na primeira rodada.

[Nota Final: Percebo agora que meu rastreador de rodadas pode dar a impressão de que permito que conjuradores lancem um feitiço, depois se movam e o liberem. Não é o caso. Eu permito que os conjuradores se movam primeiro e então comecem a conjurar o feitiço que declararam antes de rolar a iniciativa, o que então atrasa o feitiço por um número de segmentos igual ao gasto com o movimento.]

Como sempre, se tiver dúvidas, avise-me.

Paz e bom jogo.

∞ Anthony Huso ∞


Veja a primeira parte desta exposição aqui.

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