(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em abril de 2013)
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Você está jogando neste grupo... |
Uma das reclamações mais frequentes sobre as versões mais antigas de D&D é sobre a sua alta letalidade — que os personagens morrem com muita frequência. Mais irritante para esses críticos é o fato de que os personagens morrem de forma aleatória. Eles morrem com um único golpe, com a mordida de um rato gigante, caindo em um fosso sem direito à jogada de proteção, ou falhando em uma jogada de proteção que tinha apenas 4 em 20 chances de sucesso. Às vezes, não há nada que o jogador, ou pior, todo o grupo, possa fazer para sobreviver: como ser emboscado por uma chuva de flechas de 30 bandidos na floresta, por exemplo. É compreensível que isso pareça uma crueldade arbitrária incorporada ao sistema — uma morte sem sentido, sem propósito. No entanto, cheguei a aceitar isso, e até a apreciar — porque acredito que há um mal-entendido fundamental embutido nessas críticas.
Não quero dizer que esses não sejam motivos válidos para não gostar do estilo clássico, mas eles são uma crítica ao tipo de jogo que o OD&D é, e não a regras quebradas. O D&D clássico não é fantasia heroica, é baixa fantasia, e não é um jogo que se entrega a fantasias de poder individuais de cada jogador, mas sim um jogo de construção coletiva de mundo entre jogadores e MJ. Ao falar em “fantasia de poder” [power fantasy], não estou tentando desmerecer outros jogos ou gêneros que giram em torno do avanço individual ou da história de um avatar; estou apenas tentando traçar uma distinção entre uma narrativa de fantasia de sucesso individual (empoderamento) e a narrativa mais ampla de um mundo de fantasia (histórica).
O D&D no estilo antigo não é a história de um único personagem, mas sim do grupo de aventureiros como um todo, ou, em última instância, de um mundo fictício inteiro. É por isso que substituir personagens é tão fácil. É por isso que os níveis de poder são relativamente comprimidos e os monstros surgem de forma aleatória, em vez de balanceados por encontro. Em um nível ainda mais abstrato, o estilo clássico é sobre o mundo de jogo e sobre os jogadores irem revelando-o aos poucos em cooperação com o MJ.
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...Não neste. |
Os jogadores só sobreviverão se cooperarem, e quanto melhor planejarem e cooperarem, melhores serão suas chances de sobreviver. Mas há também cooperação entre o MJ e os jogadores. A sessão constrói uma história interativa definida pelo MJ, interpretada e contada pelos jogadores, e depois alterada pelo MJ para se adequar aos interesses desses jogadores. É por isso que a teoria do jogo clássico tende a valorizar a escolha do jogador e a reclamar de "trilhos" [railroads] (aventuras pré-planejadas) e de "ogros quânticos" [quantum ogres] (encontros inevitáveis) — ambos tiram dos jogadores a capacidade de ajudar a tecer o mundo.
As regras incentivam, de forma sutil, a construção do mundo pelos jogadores por meio do sistema de pontos de experiência. Os personagens buscam crescer em capacidade de sobrevivência, e só podem fazer isso saqueando e gastando dinheiro. Eles transferem riqueza de ruínas/lugares perdidos para dentro da economia do jogo. Como só podem avançar gastando grandes quantias de ouro, acabam realizando feitos grandiosos, transformando o mundo do jogo.
Na campanha de OD&D que jogo no G+, os personagens: tentaram inventar feitiços, construíram santuários escondidos para deuses duvidosos, compraram propriedades, ergueram estátuas comemorativas e, agora, no 6º nível, estão tentando reconstruir uma estrada com um posto fortificado de pedágio para lucrar com novas rotas de comércio. Nada disso foi planejado pelo MJ, mas o mundo de jogo estava aberto a isso, e mesmo que nosso grupo seja destruído pelas forças do barbarismo que se opõem às novas rotas comerciais, deixaremos algo para trás (além de um tesouro em equipamentos). Se o plano der certo, haverá uma rota de comércio e uma torre; se falhar, uma estrada pelas metades, um exército de mercenários mortos e ao menos uma cidade empobrecida. Tenho certeza de que o MJ acrescentará essas mudanças ao mapa quando criarmos um novo grupo. Transformar o mundo do jogo empodera os jogadores, e também mostra por que um “Total Party Kill” é uma coisa boa — a destruição dos personagens vira parte do mundo.
Exemplo de um TPK que gera construção de mundo: quando os dados de encontros aleatórios mostram que um grupo ousado de 2º nível é emboscado por trinta bandidos armados com arcos longos, e o grupo é surpreendido, perde a iniciativa e cai sob uma chuva de flechas sem chance de reagir, o mundo do jogo ganha algo. Qualquer MJ que não marque nesse hexágono um covil de bandidos com uma quadrilha especialmente cruel e eficaz está cometendo um grande erro. Grupos futuros evitarão aquela estrada, a menos que estejam atrás dos bandidos. E se os bandidos forem derrotados, é óbvio que terão alguns dos pertences do grupo morto.
2) SEU PERSONAGEM É SEM GRAÇA POR UM MOTIVO
Um personagem de 1º nível é apenas uma linha de estatísticas e tem uma boa chance de morrer em sua primeira aventura. Isso acontece porque OD&D não é sobre grandes heróis destinados à glória. O aventureiro pode ser até um trapalhão: um ex-soldado azarado, um aprendiz de mago desonrado, um ladrão excepcionalmente ganancioso ou um fanático religioso ambicioso demais. Ao ver o grupo pela primeira vez, a reação correta é pensar: “Alguns desses otários não vão voltar.” Seu personagem pode certamente se tornar um herói, um indivíduo misterioso com uma história e poder — mas apenas com o tempo e através do jogar — você começa apenas como mais um veterano com uma cota de malha gasta e uma espada. Uma linha ou até algumas palavras de descrição já bastam para servir de base.
Brinque com o excelente gerador de personagens do blog Save vs. Total Party Kill. Todos deveriam usar algo assim no estilo de jogo clássico, porque ele cria PJs interessantes, vagamente definidos e, em última instância, descartáveis (embora às vezes crie crianças um tanto perturbadoras). Claro, você pode não ter querido jogar como uma elfa madura, obesa, com uma túnica puída e o feitiço Hold Portal, mas ver como essa personagem interage com o mundo faz parte da história que o jogo está criando. Com o tempo, “Olhos da Chuva, a Rotunda” vai se desenvolver. Se ela de alguma forma chegar ao 10º nível, a túnica puída será substituída por algo estranho, o mundo de jogo sem dúvida fornecerá uma personalidade através do jogo, e é bem provável que você tenha uma personagem interessante. Se não uma heroína, ao menos alguém com uma história envolvente e alguns traços únicos (cicatrizes de armadilhas de fogo, uma mão dourada animada e um diabinho de estimação são bem possíveis). O que a personagem também terá será uma pilha de companheiros mortos. Isso é bom, desde Groog, o guerreiro — devorado pelo primeiro super-rato encontrado, até o muito saudoso parceiro usuário de magia da elfa, “O Necromante Encapuzado (Antigamente, Chumly)”, cujos grimórios agora estão em suas mãos. Essas perdas e aventuras formam um arco narrativo convincente, porque não são apenas elementos de fundo sobre um passado narrado ou a morte de amigos sem nome. O jogo prolongado cria um histórico de feitos fictícios que o jogador (e os outros jogadores) lembram e levam em conta, com conhecimento e envolvimento reais. Tramas como vingar ou homenagear a morte de um PJ facilmente se tornam centrais na campanha, sendo entusiasticamente apoiadas por toda a mesa.
Isso se torna ainda mais importante quando o MJ deixa a excentricidade dos jogadores evoluir e criar ficção no mundo. O personagem que decide seguir um deus menor e inventa uma mitologia para ele dá ao mundo do MJ um novo culto (e o quanto as crenças do personagem correspondem à versão do MJ sobre o deus/religião depende do MJ — o que fornece ganchos de missão ou transforma o PJ em um fanático solitário). Cada bando de goblins poupado e recrutado cria uma nova classe jogável para futuros PJs de reposição, e cada feitiço pesquisado pode ser roubado por ou vendido a outro mago.
O lado positivo disso é que personagens iniciais simples desencorajam drama excessivo. Jogadores que querem interpretar tipos disruptivos ainda podem fazê-lo, mas se o personagem sobreviver, será apenas trabalhando com o grupo, e não terão um histórico elaborado para justificar jogadas antissociais. Se desenvolverem um histórico dentro do jogo (insanidade ou maldade, por exemplo) que possa atrapalhar o jogo, isso acontece como parte da própria aventura, e os outros jogadores provavelmente já terão encontrado uma forma de se adaptar, ou ao menos terão empatia.
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Você não pode criar o Oddball, porque suas excentricidades terão conquistadas através do jogo... |
3) MESMO QUANDO OS PERSONAGENS GANHAM SINGULARIDADE, O GRUPO CONTINUA SENDO IMPORTANTE
Como complemento ao pensamento anterior, não é realmente o personagem individual o agente narrativo de um jogo clássico, ou seu foco. O grupo de aventureiros é o foco. Mesmo que os membros mudem ou sejam substituídos, o grupo continua sendo o mesmo, e são os esforços coletivos dos jogadores que escrevem a ficção do mundo, raramente as ideias de um único jogador ou do MJ. Personagens em OD&D não costumam se separar e correr pelo mundo sozinhos (as regras não foram feitas para isso), eles tomam decisões coletivas para onde viajar, quais masmorras explorar, quais facções enfrentar.
Se olharmos o jogo sob essa perspectiva, o problema da morte arbitrária deixa de ser um problema, ela é parte integral do jogo. As mortes garantem que o grupo evolua e mude com o tempo, contando sua própria história. Sem essas mortes de personagens, o perigo do mundo nunca é realmente sentido, e a narrativa nunca terá a mesma tensão da derrota. É fundamental entender que, como exercício cooperativo de construção de um mundo fantástico, os habitantes individuais desse mundo quase nunca são necessários para a história maior que está sendo criada coletivamente. De certo modo, as regras punitivas de morte de personagens no OD&D ajudam a garantir que o jogo não se torne um conjunto de fantasias individuais, muitas vezes conflitantes, de cada jogador sobre seu próprio avatar. A capacidade de se reunir com outras pessoas e inventar um mundo de fantasia é o que torna os jogos de mesa unicamente divertidos, e acredito que o sistema do OD&D para isso enfatiza esse aspecto de maneira bastante eficaz.
∞ Gus L. ∞
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