(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em março de 2018)
Ele confiou neles... |
Livros de RPG: para que servem, afinal? A pergunta tem sido feita várias vezes recentemente; por Joseph Manola em um post de blog, por noisms em resposta a esse post, e em vários comentários de blog cada vez mais irritados de Kent. Intencionais ou não, todas essas postagens desafiam uma noção central deste blog — a de que publicações de RPG devem estar enraizadas no jogo real, e ser projetadas muito especificamente com o jogo real em mente. Meu desafio comum aos leitores é: “Você realmente joga?” (Estou falando com vocês — isso significa VOCÊ, Kent!), e digo isso a sério — tenho batido nessa tecla há mais de uma década. O desafio deles, por outro lado, é: “O seu material é realmente jogado?”, e quer seja um “você” geral ou específico, eles têm razão.
Muitos livros de RPG, sejam ou não voltados para o jogo, nunca são realmente usados em mesa — pelo menos não da forma como são publicados. Embora eu jogue regularmente, costumo usar meu próprio material, recorrendo a módulos prontos apenas para partidas únicas e mini campanhas ocasionais. Eu resenho módulos com ênfase na jogabilidade, mas certamente não jogo a maioria deles. Eu prego a criação caseira e o evangelho do “faça você mesmo” [DIY: do-it-yourself], e ainda assim publico material para outros (que eles não jogam). Fui pego pela minha própria armadilha! E justamente quando eu me preparava para lançar um fanzine!
Ainda assim, embora essas boas pessoas façam boas observações (não apenas ao descrever a realidade da cena de RPG, mas também ao mostrar como os livros são “minerados” em busca de inspiração ou usados como entretenimento indireto), não acredito que eu esteja errado. Em vez disso, quero retornar a um lema criado por T. Foster — “Ajuda à criatividade, não substituição da criatividade” — e outro da Mythmere [link do texto original, quebrado] — “Imagine até o inferno disso!”. Claro, ambos estavam reafirmando e refinando um ponto originalmente feito por Bob Bledsaw há muito tempo: “Tudo o que está contido aqui serve apenas de inspiração para os juízes ativos e pontificais da guilda. Por favor, altere, ilumine, expanda, modifique, extrapole, interpole, reduza e manipule ainda mais tudo o que está contido para adequá-lo ao tom de sua campanha.
Esses motes expressam algo sobre a flexibilidade de bons materiais de jogo. Cada mesa cria uma experiência distinta, individual, algo completamente oposto ao entretenimento de massa cuidadosamente projetado, profissionalmente produzido, mas homogeneizado da nossa era. Mesmo que estejamos criando o mesmo tipo de histórias, cada grupo as cria de maneira ligeiramente diferente. Essa variedade e esse elemento humano podem ser uma desvantagem com jogadores ruins (razão pela qual alguns jogos, de forma equivocada, tentam nos proteger de más experiências com regras restritivas [2]), mas é um dos grandes atrativos dos RPGs quando jogados em boa companhia. Nenhum design profissional pode substituir a imprevisibilidade mágica da cocriação, mesmo que seja desajeitada e imperfeita. Ela não pode ser engarrafada e reproduzida de forma confiável. Pior ainda, tentar reconstruir com precisão uma campanha que se desenrola espontaneamente resultará em uma estrutura ao mesmo tempo rígida (porque não permite interferência do grupo) e frágil (porque o movimento errado pode destruí-la); uma estrutura que carece da dimensão temporal de uma campanha em formação gradual, bem como de sua qualidade evolutiva. É por isso que, no início, a TSR não acreditava na ideia de módulos prontos (e o renomado autor de módulos Rob Kuntz ainda não acredita), até que a Wee Warriors e a Judges Guild abriram o caminho.E, no entanto, bons suplementos de RPG sem dúvida existem. São aqueles que levam a aventuras memoráveis, grandes campanhas e às histórias de guerra que você ainda lembra mesmo depois que a campanha acabou e o grupo se desfez há tempos. Trata-se dos suplementos que despertam sua criatividade e envolvem sua imaginação. O gancho aleatório que sequestra a campanha. Fazer as coisas de forma diferente do texto escrito não é um defeito, é uma característica [feature]. Reaproveitar um suplemento e fazer uma reimaginação extensa é um sinal de respeito, não de desrespeito. Claro, bons livros de jogo também precisam ser específicos. Devem trazer algo interessante à mesa que não ocorreria ao MJ— uma nova forma de pensar, uma estética antes ausente da campanha, encontros ligeiramente fora da zona de conforto do grupo. Os melhores combinam os dois aspectos: “Uau! Eu não teria pensado nisso!” e depois: “Agora, e se eu adicionasse pinguins?”
Tomos de sabedoria antiga ou lixo além da conta? |
Estimular a criatividade é algo delicado. É uma linha tênue a ser percorrida, entre uma folha completamente em branco que nada diz e nada oferece de concreto (o proverbial bloco de papel branco em que você pode rabiscar qualquer coisa) e uma estrutura densa que fornece todos os detalhes por você, mas que toma o controle e transforma tudo em um romance no qual você e seu grupo se tornam meros observadores passivos. É justamente aí que a estrutura e a forma importam. Existem muitas maneiras de se inspirar — há quem se inspire em livros de ambientação, relatos de campanhas escritas e todo tipo de material curioso (eu mesmo praticamente abandonei a fantasia e busco minhas ideias em uma dieta constante de não ficção e nas notícias diárias) —, mas quando se trata de uso real em mesa, há boas práticas estabelecidas e há uma infinidade de más práticas. Para estas últimas, basta olhar para o que é produzido pelos grandes editores de PF e 5e — podem até parecer leituras interessantes para o banheiro, mas quando levadas à mesa, são um emaranhado inflado e desajeitado, cheio de encontros que funcionam bem na leitura, mas terrivelmente em jogo. Quanto às boas práticas, existem padrões bem testados (como o velho sistema de descrições de localidades ou o mapa de relacionamentos) e alguns experimentos promissores (como o uso de hipertexto ou certos layouts que muita gente tem explorado); e embora o restante possa ser útil como fonte de ideias e inspiração, não é adequado diretamente para conduzir um jogo. Não é coincidência que os jogadores old school que gerenciam suas próprias campanhas valorizem um bom design de informação e uma concisão expressiva: é uma abordagem que funciona, e funciona muito bem.
E é aqui que entra a cena (ou movimento, ou seja lá o que for) old school. [3] Nossa missão principal não é produzir leituras de passatempo interessantes — embora isso possa acontecer como efeito colateral. Nossa missão é cultivar uma certa ideia de como jogar e conduzir jogos, disseminar suas práticas, inspirar os outros e ser inspirado. É uma comunidade criativa construída sobre a troca de ideias; ou seja, centrada na discussão. Todas as publicações que cresceram em torno disso são secundárias, e se tudo isso desmoronasse hoje, ainda estaríamos aqui amanhã. (É também por isso que vejo perigos claros na transição da OSR de um cenário voltado ao “faça você mesmo” para um muito mais orientado ao consumo.) Os posts de blog, os tópicos de fórum, as práticas compartilhadas e, sim, os suplementos fazem parte dessa conversa, mesmo que não sejam imediatamente postos em uso. O objetivo é permitir que melhoremos nossos próprios jogos (o que pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes) e compartilhar nossas ideias com outros, para que eles possam melhorar os deles. Esse é o nosso chamado às armas. [4]
Quando se trata de realmente publicar algo, suplementos relevantes para o jogo e devidamente testados [5] são fundamentais, pois difundem as ideias de um bom jogo e resistem ao teste do uso em mesa. O inverso também é verdadeiro: maus livros de RPG encorajam um jogo monótono, inibem a criatividade e nos reduzem a consumidores passivos. Os editores podem se safar disso e até prosperar por um tempo, mas isso cria uma cena de jogo moribunda, que estagna e acaba murchando (como é o caso de grande parte da cena de RPG húngara). Isso importa para nós, que jogamos! Devemos ter salvaguardas contra isso. Antes de tudo, devemos jogar, porque é aí que está o núcleo do hobby. Em segundo lugar, devemos discutir o jogo: é aqui que entram os fóruns, blogs e o velho G+. Em terceiro, devemos apoiar o jogo: e apoiá-lo com materiais utilizáveis, bem pensados e acessíveis, que não preencham todas as lacunas, mas que ajudem outros a conduzirem suas campanhas ou experimentarem one-shots interessantes. Quarto, não há quarto ponto. Isso é tudo que precisamos.
Os produtos old school cumpriram seu papel de reintroduzir uma certa ideia de como jogar e projetar RPGs, e de explorar as direções que eles podem tomar? Em certo sentido, sim. Não há muito o que se ganhar com mais um Swords & Wizardry, e talvez nem com uma nova reformulação de Keep on the Borderlands (a menos que seja feita de uma forma particularmente perspicaz, por alguém que realmente entenda o espírito!), mesmo que esses jogos continuem a inspirar novas e novas campanhas caseiras ao longo das gerações e edições. Mas — como é evidente pelo estado do discurso sobre jogos além da nossa pequena bolha de pensamento, e pela qualidade de muitos produtos que se dizem old school — ainda há muito a ser feito para realizar coisas novas e interessantes com nossas ideias, e difundi-las por meio de produtos bem escritos e úteis, que ajudem, não substituam ou obstruam.
Por fim, outro ponto: às vezes boas ideias precisam ser reiteradas para nos lembrar do que importa, para nos ajudar a focar novamente, ou simplesmente pelo bem dos recém-chegados. E isso nos traz de volta à raison d’être [razão de ser] do — não, não dos produtos de jogo desta vez — próprio jogo old school.
∞ Gabor Lux ∞
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1. https://beyondfomalhaut.blogspot.com/2018/03/blog-aid-not-replacement.html
2. https://dustdigger.blogspot.com/2025/09/um-problema-que-nao-pode-ser-resolvido.html
3. https://dustdigger.blogspot.com/2024/10/um-olhar-historico-sobre-o-osr-parte-v.html
4. https://dustdigger.blogspot.com/2024/09/a-resposta-nao-esta-na-ficha-uma.html
5. https://dustdigger.blogspot.com/2025/07/o-devido-credito-modulo-osr-02.html


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