(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em julho de 2024)
Um dos grandes nomes na discussão de jogos históricos/modernos, Black Vulmea, contribuiu [2] comentando sobre minha postagem anterior. Quando pessoas que você respeita consideram sua postagem e acham a maior parte dela muito boa - isso é uma incrível sensação. A principal questão que minha postagem deixou para ele foi a mesma que normalmente surge em resposta ao CAG (Classic Adventure Gaming, ou Jogo de Aventura Clássico), que é uma variação de: “Você rejeita o termo ‘interpretação de papéis’? O que exatamente isso significa?”
BV enquadrou seus pensamentos sobre interpretação de papéis da forma mais comum que ouço de pessoas que, em sua maioria, são receptivas ao CAG:
“Minha concepção pessoal ou ideação – tenho relutância em chamar de definição – de interpretação de papéis é 'Tomar decisões como seu personagem'. Se seu personagem é um avatar de você no mundo do jogo, como no CAG, então isso ainda se encaixa na minha concepção de interpretação de papéis. Isso também inclui o ‘estilo de encenação’ que o EOTB descreve como sendo praticado e defendido por muitos no hobby. Do meu ponto de vista, interpretação de papéis não é estritamente uma imersão profunda no personagem ou ‘falar com vozes engraçadas’. ‘Meu cara’ é uma abordagem perfeitamente válida de interpretação de papéis para mim.”
É assim que muitas pessoas com mais tempo no hobby como um todo pensam sobre interpretação de papéis. Entende-se, pelo menos implicitamente, que a maioria das pessoas usa o termo de forma mais restrita – daí, inevitavelmente, há alguma variação de “o que interpretação de papéis significa para mim…”. O “para mim” é reflexivo porque todos nós já passamos por discussões online suficientes para saber que não podemos dizer “interpretação de papéis” e esperar que os outros entendam que simplesmente queremos dizer jogar com um arquétipo, ou um papel funcional em um grupo de especialistas variados, ou algo assim. Na discussão mais ampla, isso resultará no oposto da comunicação funcional. Assim, alguma forma de negociação ocorre onde estabelecemos significados alternativos que o ouvinte considerará idiossincráticos a nós, mas que pode estar disposto a aceitar, e a partir daí a conversa pode acontecer.
No entanto, esta é uma negociação pessoal que deve ocorrer a cada vez que o assunto surge em um ambiente público, seja nas redes sociais ou em grandes grupos em que os membros variam com o tempo. Sempre deve ser estabelecido que usaremos uma palavra de uma maneira que a maioria das pessoas não usa.
Eu não culparia ninguém por escolher fazer isso, mas eu realmente não quero ter essa negociação periodicamente. As palavras mudam de significado, e parece uma ação retrógrada insistir em usá-las em um significado que já passou. A palavra "meat" (carne) costumava significar toda a comida na mesa – seja animal, vegetal ou de outra origem. Se eu escrever em um convite que todos são bem-vindos para vir à minha casa no sábado à noite para uma noite de boa “carne e bebida”, nenhum vegetariano vai pensar em verificar o uso da palavra. Eu teria que explicar meu uso arcaico do termo individualmente ao dar o convite.
E isso nos leva ao motivo de iniciar o (CAG) podcast – queremos alcançar pessoas que não estão jogando nenhuma forma de “D&D”, mas que adoram a ideia de se reunir com amigos para explorar tumbas perdidas, encontrar tesouros fabulosos e cruzar espadas com nêmeses pessoais. Mas como o D&D já existe há muito tempo, com alcance significativo nas redes sociais fora dos membros do hobby, quando muitas dessas pessoas ouvem a palavra “interpretação de papéis” elas pensam em “uma versão adulta do chá de bonecas”.
Porque é isso que elas leem, veem e ouvem.
E muitas vezes, elas simplesmente não estão interessadas nisso. Você pode ter toda a aventura que mencionei acima em outras mídias, sem nenhum chá de bonecas. Não há razão nenhuma para jogar D&D se você não gosta de chá de bonecas. Você pode jogar videogames em grupo, online. Você pode se reunir em algum lugar e rodar um cenário de 40K. Você pode se satisfazer e nunca ter que correr o risco de sentar-se à frente de alguém que lhe diga que a menos que você esteja disposto a repetir aquilo “dentro” do personagem, o que foi dito nunca aconteceu de fato e eles não considerarão válido para o jogo. Ou sua piada engraçada que fez todos rirem, sim… O DM (Dungeon Master ou Mestre de Masmorra) insiste que seu personagem também a disse.
Eu não estou apenas teorizando ou atacando jogos fictícios. Se “Sem interpretação de papéis?!?” é a primeira questão que muitos RPGistas curiosos levantam, também é a primeira razão que muitos novos jogadores de CAG dão para conferir nossa proposta e se estabelecerem. Um dos membros do podcast ignorou o D&D por anos porque sua primeira exposição ao tabletop (RPG de mesa) foi no final dos anos 90, depois que os jogadores engoliram avidamente editoriais da revista Dragon e dizendo sem rodeios que, se eles não incluíssem uma boa dose de encenação em seus jogos, então eles não estavam realmente interpretando papéis.
E o que ele observou não o interessou nem um pouco.
“Realmente interpretar” reduz o hobby de jogos tornando-o desagradável para muitas das pessoas que Dungeons and Dragons presumiu serem seu público-alvo. O que é estúpido, porque este é um público que compraria coisas – D&D (WOTC) agora deseja desesperadamente atrair para si mesmo o rendimento monetário de formas de jogos em que encenação não é necessária, e está freneticamente alucinando formas diferentes de fazer as pessoas encenarem online e comprarem novas skins (roupagem) de personagens sempre que criam personagens.
Olha, eu já passei por isso também – negociando uma definição alternativa para o termo “interpretação de papéis”. As respostas mais comuns quando eu descrevia como rodava jogos para um público geral (exceto o já mencionado “isso não é realmente interpretação de papéis”) eram:
Você está apenas jogando um jogo de tabuleiro/videogame na mesa.
Bem, eu interpreto, eu não jogo com números.
É um jogo de interpretação de papéis – está bem no nome!
O jogo para mim é completamente sobre ser outra pessoa, se você não está interpretando (encenando) personagens interessantes, por que jogar o jogo, afinal?
Em algum momento, após uma dessas conversas, misturado com a 7.162ª discussão online sobre “o que o OSR realmente significa”, a única reflexão sensata foi dizer "É hora de assumir isso – eu realmente não estou interpretando". Eu honestamente não me importo se a interpretação de papéis (encenação) acontecerá ou não. Não é por isso que estou aqui. Se eu disser isso primeiro, então atraio mais pessoas que já estou tentando encontrar e desincentivo pessoas que querem algo diferente do que eu quero na mesa.
Tudo isso se resume a: Não poderia haver nada mais autossabotador do que insistir em se descrever algo usando uma terminologia que seu público-alvo está programado para rejeitar; seu uso predominante sendo reforçado por quase todos que não seja você.
Mas agora, depois de explicar mais sobre por que chegamos à posição de rejeitar completamente o termo interpretação de papéis, vamos ao ponto central da pergunta de BV:
“Esta é a essência do ‘Desenvolver-em-Jogo’ em vez de ‘Desenvolver-Do-Princípio’. Jogadores oldschool e radicais tendem a falar em termos de ‘história’ como uma propriedade emergente que surge do jogo prático em mesa em vez de uma planejada pelo mestre – a história é algo visto em retrospectiva – e pela minha própria experiência, assim é a caracterização. Quanto mais decisões tomo para meu personagem, mais decisões subsequentes provavelmente refletirão uma consistência e coerência com o que veio antes. Meus personagens desenvolvem interesses, hábitos e manias que constroem sobre aquelas experiências e ambições e ‘meu cara’ se torna alguém completamente diferente, muito diferente de onde a campanha começou.
Eu não sei se o conceito de CAG de EOTB necessariamente exclui ou proíbe isso."
A resposta curta é: Não há nada sobre o que foi dito acima que esteja fora dos limites do CAG, de maneira alguma.
Toda vez que crio um personagem, é essencialmente eu mesmo como aquela classe de personagem. Mas, como BV diz, o personagem, em virtude de interagir com o mundo do jogo, muitas vezes se torna uma variação de mim mesmo que é diferente de todas as outras variações de mim mesmo que joguei antes. Eu posso nunca me preocupar em dar um nome ao cara (alguns dos meus personagens têm nome), mas ele ainda é diferente de EOTB-6106 e EOTB-5114. Ele fez inimigos diferentes, desenvolveu hábitos diferentes e muitas vezes lidaria com a mesma situação de maneira diferente de outro personagem meu.
Mas ele também pode não fazer isso. Ele pode lidar exatamente da mesma maneira. E esse é o ponto: eu não me importo se ele acaba sendo diferente ou igual a algum outro personagem. Ele não é o motivo pelo qual estou jogando, o que acontece com ele como personagem pode ser algum tipo de acidente feliz, e também pode não ser nada digno de ser lembrado. Porque eu não estou aqui para desenvolver um personagem, estou aqui – eu, EOTB-0001 – para explorar tumbas, encontrar tesouros, cruzar espadas e chutar traseiros. Ele é a ferramenta que eu uso para fazer isso, assim como um bom martelo. Nada sobre o martelo é meu hobby, no entanto. É algo incidental ao ponto, mesmo se eu realmente apreciar um grande martelo.
Os últimos personagens que joguei foram um ranger no jogo de AD&D de Zherb e um ladrão na campanha 7VoZ de Melan. O ranger nunca foi nomeado, embora o ladrão tenha sido. Na criação do ranger, a rolagem de dados do Discord (por algum alinhamento de probabilidades tipo Powerball) deu uma sequência de atributos permitindo uma combinação de classes que eu nunca havia jogado antes: um ranger que poderia se tornar multi-classe com ilusionista. Eu jogo há muito, muito tempo, mas isso nunca aconteceu. Fiquei intrigado. Ainda não fiz a mudança de classe, mas esse personagem ranger se sente diferente simplesmente porque ele já está à procura de coisas relacionadas à Ilusão. Minha tomada de decisões é diferente e, portanto, as experiências são diferentes, as prioridades são diferentes. Provavelmente não o nomearei até ele completar a mudança e poder usar ambos os conjuntos de poderes. Eu realmente não o conhecerei até então.
Zero interpretação de papéis (no sentido comum) ocorreu com esse personagem.
O ladrão subiu na hierarquia do submundo na campanha de Melan, evitando converter toda a sua moeda em XP e comprando ativos em vez disso, formando um caravançarai de grande alcance com um capitão de navio contrabandista talentoso útil para mover… Muitas coisas… para muitos lugares.
Ele comprou presentes para tribos nômades simplesmente para ganhar boa vontade, caso seja necessário negociar no futuro para mover… Coisas… Para lugares… Através do território delas. E tudo isso foi feito no tempo de inatividade entre fantásticas aventuras de espadas e feitiçaria que o viram ganhar imensa força física por se sentar em um trono misterioso, ganhar alguns benefícios divinatórios que ele mantém na manga por respeitar altares de deuses-morcego e algumas outras coisas que, bem, teremos que ver como se desenrola se eu conseguir liberar aquele dia/horário novamente em breve. Mas tomo decisões com aquele personagem de uma maneira diferente de qualquer outro personagem ladrão que joguei.
Houve um pouco de interpretação de papéis de minha parte naquela campanha. Não muito, foi incidental, feito quando foi útil em vez de performativo. Mas nunca foi necessário.
O mínimo aceitável de interpretação de papéis para um participante individual deve ser zero, para que as pessoas que não estão interessadas nisso possam relaxar e se divertir. O teto pode ser o que cada grupo determinar. Mas se todos concordarem que realmente estão ali para maximizar o jogo de aventura – explorar, saquear, lutar, conquistar e ganhar glória – então, realmente há tempo de mesa suficiente para que a interpretação de papéis seja mais do que incidental? Uma atividade com um mínimo de zero de uma possível ação não pode ser definida por essa ação. Tentar isso seria sem sentido – mas, inversamente, mudar o nome de “jogo de aventura de fantasia” para “RPG” também é a razão pela qual a encenação com interpretação de papéis cresceu de uma coisa estranha que algumas pessoas faziam, para uma ferramenta retórica empunhada por editorialistas da TSR (Antiga dona de D&D) que não gostavam muito de jogos de alto risco.
O hobby precisa de um estilo de jogo reconhecido onde as pessoas saibam que uma mesa que o utiliza não vai perder tempo “de rolar dados” conversando com mercadores para comprar flechas, elas não precisam se preocupar em jogar como Bob, o 53º (que é o mesmo em todos os aspectos que os 52 Bobs anteriores) e receber um olhar de desprezo por isso, e nunca precisarão estar “no personagem” se não quiserem. O CAG é esse estilo de jogo (entre outras coisas) e já estava mais do que na hora dele surgir.
∞ EOTB ∞
∴
1. https://csio.blogspot.com/2024/07/no-roleplaying.html
2. https://black-vulmea.blogspot.com/2024/07/make-mine-adventure-roleplaying.html
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