sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Contra o Ultra Minimalismo [Módulo OSR O1]

(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em janeiro de 2017)

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Não escreva aventuras de uma página e conjuntos de regras super leves.

Você ficaria satisfeito com isso por uma postagem no blog? Provavelmente não. E, no entanto, assim como os jogos da nova escola sofrem sob a bota da Tirania da Diversão, o velho estilo de jogo enfrenta outra crise de traição: a ameaça sinistra do Ultra Minimalismo! Tudo isso é verdade, e aqui está o motivo pelo qual você deveria fazer algo a respeito.

Uma das grandes descobertas nas discussões sobre o estilo old school foi perceber que muito do acúmulo de material nos produtos de RPG mainstream era supérfluo ou até prejudicial para os jogos. Todos conhecemos as histórias sobre designers pagos por palavra (e muito pouco, aliás), sobre romancistas fracassados e textos inflados lançados sem qualquer teste prático. Uma parte considerável das publicações de RPG é feita por não-jogadores, para não-jogadores. São gamers, mas não exatamente. Dá para dizer que, a esta altura, isso se tornou um hobby próprio, até você começar a perceber que você e alguns amigos talvez sejam os únicos que ainda não se tornaram "pod-people" [n.t., uma pessoa que age estranhamente de maneira mecânica]. Ainda.

"Conheça seu inimigo..."
[Mapa do excelente Dyson Logos usado apenas para fins ilustrativos]

Nessas horas sombrias, os clássicos mostraram outro caminho: o da simplicidade concisa, de uma linguagem expressiva, mas funcional, com foco no jogo. Glacial Rift of the Frost Giant Jarl tinha apenas oito páginas e o mapa colorido destacável! Tegel Manor cabia em um livreto de 24 páginas e um mapa! Keep on the Borderlands não gastava várias páginas com um histórico! Era possível reunir uma aventura de múltiplas sessões em um pacote que você poderia ler, destrinchar e usar num tempo razoável – às vezes sem nenhuma preparação, começando na hora.
 
Esses exemplos, porém, não são perfeitos. Muitas aventuras clássicas, até grandes obras como Hidden Shrine of Tamoachan, têm um baixo número de páginas porque são apresentadas em blocos de texto desorganizados (e às vezes até caóticos). Os módulos dos Gigantes são tão enxutos porque não trazem os blocos de estatísticas dos monstros, nem há espaço para anotações marginais. The Village of Hommlet descreve a vida de uma comunidade rural idílica gastando muito tempo com detalhes aleatórios que realmente não importam numa aventura. E Tegel Manor pode ter trechos com pouca coisa acontecendo. Ainda assim, o estilo old school oferecia uma saída para o marasmo de prosa ruim e textos não funcionais que dominavam o mundo dos jogos, justamente porque rejeitava os padrões da indústria e evitava as práticas comerciais do setor (“quantidade significa qualidade; quanto mais, melhor”). Mas essa cruzada pela simplicidade se desviou do caminho.

Quando as pessoas perdem de vista seu propósito, as rotinas tomam conta. Continuamos fazendo algo porque dava bons resultados antes, não porque realmente consideramos as consequências. No entanto, nossas suposições podem nos enganar. Pode ser que não precisemos mais fazer isso. No estilo old school, o Ultra Minimalismo está despojando os jogos de seu sabor, profundidade e complexidade interna, e as masmorras de uma página são um bom exemplo do motivo pelo qual isso é prejudicial.

Originalmente, não havia nada sinistro nas masmorras de uma página. Elas começaram como um artifício refrescante, chamando a atenção para o quanto você precisava de pouco para ter uma noite divertida, e como uma boa apresentação poderia condensar informações vitais (texto, mapas e estatísticas) em um pacote eficiente. É como aquele estilo old school, só que mais ainda! O problema surge quando essa estrutura – essa forma de fazer as coisas – se torna um tipo de padrão e, conscientemente ou não, começa a ser aplicada em lugares onde não pertence ou onde não oferece a melhor solução possível. Suspeito que aqueles grandes concursos anuais tenham desempenhado um papel, e o senso comum nas discussões online também tenha influenciado. Masmorras de uma página, *.hacks, sistemas super leves (simplificações de sistemas já muito leves) impregnaram nosso pensamento. Começamos a encaixar nossos conceitos em molduras muito pequenas e simples, e estamos limitando nossa imaginação ao exagerar nisso. Algumas ideias não cabem em um cartão de índice. E as aventuras resultantes carecem de impulso criativo e ficam aquém dos clássicos que frequentemente tentam emular.

"The Keep on the Borderlands sem The Keep on the Borderlands..."

Alguns dos erros nem residem na imitação, mas na defesa de uma compreensão minimalista do design. Não importa apenas o que é dito, mas como é dito. O jogo não é só tecnologia. Técnicas de layout e design gráfico podem facilitar o trabalho do Mestre e melhorar enormemente a acessibilidade, mas não substituem o estilo. A versão de uma página de Caves of Chaos, de Zak Smith [2], só é realmente Caves of Chaos porque conhecemos intimamente o módulo completo; isolada, ela é mais ou menos apenas um mapa de batalha ao estilo da 3ª edição. Tal qual está, talvez “salva” por seu layout de duas colunas, essa versão de The Keep on the Borderlands parece um cascarão lobotomizado e empobrecido de uma aventura. Nessa perspectiva, ela parece mal feita e desprovida de conteúdo – mas somos nós que a fizemos assim.

Eis algumas anotações básicas, apenas aplique as regras e adicione seu estilo” é como uma sopa de pedra. O estilo, como grande parte do valor agregado ao nosso jogo, é um ingrediente que aplicamos inconscientemente, absorvendo influências ao longo do tempo. A maioria de nós se vira bem com pouquíssimas anotações, transformando até mesmo um texto simples em aventuras de qualidade (embora ter uma base para recorrer e explorar não seja ruim). No entanto, quando tentamos transmitir algum contexto a outros, precisamos de mais; precisamos colocar algo de nós mesmos. A prosa de Gygax, o humor peculiar de Bob Bledsaw ou a sensibilidade grotesca e o humor seco de M.A.R. Barker oferecem visões diferentes de mundos de fantasia, mesmo que compartilhem várias ideias comuns. Essas características, embora tecnicamente “supérfluas” para encontros específicos, conferem uma voz ao material de jogo que nos cativa e perdura em nossa imaginação.

"Memórias douradas do 1607 Cas FTR 5 LE 120..."
Claro, em parte, é também uma questão de o quê adicionar. Muitos materiais old school oferecem pouco, eliminando detalhes importantes ou limitando seu escopo a ponto de perderem o potencial ou propósito. Aqui, há amplo precedente nos clássicos, adequados para nos levar a conclusões equivocadas. De fato, os habitantes de Keep on the Borderlands não tinham nomes, e isso ajudou a tornar o módulo mais adaptável, mas essa não é a razão pela qual Keep é lembrado: além dos elementos estilísticos, sua importância reside em sua publicação como “o” módulo do conjunto básico, com sua estrutura icônica de base inicial – transição para a natureza – masmorra, e na maneira particular como Caves of Chaos foi construída como bolsões de perigo concentrado que representam um tipo de desafio ideal para uma equipe iniciante. Wilderlands of High Fantasy também tinha listas de estatísticas de fortalezas sem graça, mas o motivo pelo qual as pessoas gostavam dos Wilderlands estava no conceito dos “pontos de luz”, no hexcrawl como mini jogo subjacente, e nos contrastes fantásticos e selvagens das interações mais criativas (“Aqui está um caça MIG caído ao lado de um conjunto de fungos gigantes.” “Esta é uma vila da Idade do Bronze exportando piche perto de um bando de vikings e de uma colônia de 15 ents.”). Há uma razão para Huberic de Haghill [3] ser lembrado, enquanto aquelas fortalezas sem nome não são. Palace of the Vampire Queen, a primeira aventura de D&D, é um livro de chaves de sala que se resume a “vazia, vazia, 16 morcegos, servo corcunda, vazia, 8 zumbis, vazia”, repetido em duas ou três páginas, e ninguém se lembra dela porque não há mais nada ali.

Ao aplicarmos essas lições de forma seletiva, perdemos de vista o status icônico ou o valor menos discutido desses suplementos. Muitas megadungeons old school sofreram porque queriam recriar a experiência pura de Castle Greyhawk e acabaram produzindo salas com ratos gigantes, poeira, ossos espalhados e 3.000 peças de cobre. Não são apenas os sem talento ou imaginação limitada que caíram nessa armadilha: essa supressão consciente da própria criatividade é um dos fatores que prejudicou Isle of the Unknown, um livro de cenário com grande potencial (o outro sendo o excesso de confiança na aleatoriedade). Há muitas aventuras com lampejos de imaginação, mas que não se tornam interessantes porque não se esforçam o suficiente. E assim é com tantos módulos de “covil de humanoides” ou “pequena tumba” de dois ou três dólares na RPGNow – dez ou quinze salas básicas com habitantes e um pouco de entulho, uma armadilha, talvez um enigma mágico, e só. Discutir esses produtos não leva a muito, pois, embora funcionais, eles mantêm ideias muito limitadas e não se desenvolvem a partir daí.

Por fim, isso também diz respeito às regras. Certo, as fichas monstruosas e blocos de estatísticas gigantes da maior parte do D&D moderno são mecânicas pelo bem das mecânicas, e colocar a habilidade do jogador acima da do personagem é um dos grandes méritos do estilo old-school. Existem muitas maneiras de regras claras, simples e concisas proporcionarem uma experiência de jogo gratificante. Além de certo ponto, no entanto, os jogos também começam a perder formas interessantes de interagir com o mundo de fantasia, e você perde um pouco do valor da fricção criativa entre regras, participantes e cenário. Ao empurrar tudo para o domínio da subjetividade, não sobram pontos certos para ancorar um personagem. Posso esperar escalar uma rocha íngreme? Dá para derrubar aquele sujeito? Posso arrombar a porta? (Aqui está um ponto importante de discordância entre eu e a maioria dos jogadores old-school modernos: na verdade, eu gosto de sistemas de habilidades, contanto que eles não exagerem – habilidades oferecem uma excelente “interface” para navegar por uma realidade imaginada.) Alguns sistemas super-leves como The Black Hack tentam fornecer uma resposta sensata, mas ainda assim há algo faltando. Se você viu um, viu todos. Arrisco dizer que o OD&D regular e seus derivados já são minimalistas o suficiente para a maioria de nós. White box Swords & Wizardry já está forçando a barra. Swords & Wizardry Light? Por favor.

Para terminar com uma nota positiva, direi que há saídas para essa armadilha. O ultra minimalismo não precisa ser o padrão; na verdade, não seria difícil avançar para algo melhor. Com um pouco mais de ambição – digamos, uma “masmorra de quatro páginas” ou uma “masmorra de dez páginas” – poderíamos ter uma categoria de produtos que ofereçam um bom compromisso entre brevidade e complexidade. Este é o território das mini aventuras tradicionais, ou algo no nível de Steading of the Hill Giant Chief e Shrine of the Kuo-Toa. Dá para colocar uma boa quantidade de conteúdo interessante ali; um pano de fundo que envolva a aventura, uma seção de natureza selvagem ao redor da masmorra, um nível extra na masmorra que recompense o progresso. Isso também se aplica aos encontros individuais, que não precisam voltar a ser enormes – basta adicionar um pouco a mais. Uma “bota velha jogada em uma pilha de lixo” não é um encontro de masmorra. Mas “uma bota velha e desgastada, pisando em um rosto humano – para sempre”... bem, aí temos algo interessante. A partir daí, é possível criar algo rico e memorável.

Não estou dizendo que devemos voltar aos padrões da TSR dos anos 90 ou à era dos splats. Apenas devemos reconsiderar a função, focar nas coisas que fazem o jogo ser recompensador – e tirar conclusões razoáveis.

Gabor Lux
∞ ∴ ∞

1. https://beyondfomalhaut.blogspot.com/2017/01/blog-osr-module-o1-against-ultra.html
2. http://dndwithpornstars.blogspot.com/2011/09/caves-of-chaos-is-one-page-dungeon.html?zx=818a24ed5238a717
3. https://beyondfomalhaut.blogspot.com/2016/09/blog-let-me-use-huberic-of-haghill.html

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