segunda-feira, 5 de maio de 2025

Como o D&D pode Aliviar a Depressão e a Ansiedade ou Por Que Voltar a Usar seus Livros e Mestrar

(Publicação, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em maio de 2025)

"Como Dungeons & Dragons salva vidas: pesquisadores descobriram que pessoas que jogam D&D demonstram melhorias em sua saúde mental. Os pesquisadores James Cook e Alyssia Merrick lideraram o estudo sobre o jogo de mesa que requer imaginação. Merrick disse que participantes mostraram diminuição significativa em depressão, estresse e ansiedade, e melhorias significativas em autoestima e auto eficácia  durante o período do estudo..."
Gostaria de tocar num assunto que normalmente não é muito abordado, pois acredito que minha experiência possa servir de incentivo a outras pessoas que adiam o início nesse hobby ou mesmo seu retorno a ele. Na imagem, a chamada da matéria pode parecer sensacionalista ou até exagerada, mas não se enganem, não há exagero nas palavras: o clássico RPG [1] chamado D&D [2] de fato, me salvou, e essa qualidade terapêutica do jogo, vem sendo divulgada recentemente com maior frequência. Temos cada vez mais pesquisas tratando sobre isso, assim como esse estudo da Doutora Merrick, revelando que os jogadores "experimentaram a diminuição da depressão, ansiedade e do stress durante o período" no qual jogaram D&D.

Não vou entrar nos pormenores da minha condição. Basta dizer que tenho lutado contra um forte sentimento de luto, aliado a outras questões pessoais que me levaram a um quadro de depressão profunda, posteriormente desenvolvendo também ataques de pânico, ansiedade e alienação. Essa condição aparentemente foi agravada na pandemia. Nesse período, senti vontade de reler alguns livros de RPG que não via a tempos e acabei desenterrando da minha estante meu material de AD&D 2nd Edition [3] usados quando comecei a jogar em 1989. Após apreciar a leitura dos meus livros antigos que estavam guardados, fui além e decidi ler a então recém-lançada aventura Curse of Strahd: estava curioso para entender o que é que a equipe da WotC [4] fizera com a história clássica de Strahd [5], jogada e estimada por mim durante seus releases originais nos tempos da TSR [6]. Eu não tinha ideia de que a leitura da aventura abriria uma caixa de pandora. Foi então que a ideia me veio, após alguns dias lendo o novo módulo: como a clausura ainda levaria um tempo para acabar, esse poderia ser um momento perfeito para voltar a jogar, agregando a família, no contexto da pandemia, esposa e filho, únicos que poderiam participar das sessões já que estávamos em reclusão sanitária. Portanto, abracei a missão de converter a aventura para que pudesse ser jogada usando o sistema 2nd Edition.

Nunca considerei usar a 5th Edition como sistema. Sempre soubera que quando voltasse a jogar, continuaria fazendo uso de meus livros de AD&D, acredito que por vários motivos, importantes para um velho grognard como eu, de serem esclarecidos aqui. Em primeiro lugar, o óbvio: fazer uso dos livros que eu já tinha, eliminaria a necessidade de investir em novos livros, economizando dinheiro e sobretudo tempo. Mas outros dois fatores foram mais determinantes. A familiaridade com o sistema foi o primeiro fator decisivo: usando meus livros antigos, não era necessário ler e memorizar nada, as regras foram lidas e relidas anos atrás e já estavam memorizadas. Essas regras, discutidas e usadas em centenas de sessões, com diferentes grupos de pessoas, possuíam memórias de suas aplicações e conexões com velhas histórias de uma época e de inúmeros contextos, portanto, remetem qualquer jogador veterano um sentimento de conforto, de algo que lhe é agradavelmente familiar. Nós literalmente “crescemos” usando essas regras e aos meus olhos, elas funcionavam muito bem. Por que trocar algo que era perfeito?

A questão mais decisiva fora sem sombra de dúvida, a nostalgia. Voltar a jogar AD&D significava poder reviver uma experiência vivida anteriormente. Uma experiência que remetia a uma época marcada pela adolescência, pelo descobrimento de responsabilidades, de amadurecimento, mas também da liberdade de descobrir o mundo, da descoberta de uma vida social com um grupo de pessoas de interesses comum e na consolidação de um hábito que edificava. Jogar D&D, na minha geração, nos fez aprender muita coisa. Começando pela barreira da língua, foi necessário aprender a ler inglês, necessário adquirir uma disciplina de leitura, aprender a perder a vergonha de interpretar, gerenciamento de regras num grupo e a memorizá-las, defender argumentos, negociar, trabalhar em grupo e todo tipo de atividade intelectual e social que nos transformava em seres humanos melhores. O D&D nos moldou, e eu ainda sinto que esse hobby continua me ensinando e me tornando melhor. Portanto, usar o sistema de 2nd Edition, amplamente vivenciado numa época que marcara o “início” da fase adulta, é uma viagem no tempo, onde memórias afetivas de centenas de histórias afloram a todo momento. Reviver e fazer uso do AD&D, traria de volta os “anos dourados” vividos durante a boa e velha TSR.

Adaptada a aventura e revisado o sistema com a releitura dos livros básicos, Player´s Handbook e DM Guide, montamos os personagens e começamos a jogar usando algumas miniaturas e os auxiliares de jogo que eu já possuía a muitos anos. Fizemos durante a pandemia, pelo menos 25 sessões de jogo, com média de cinco a seis horas cada, com algumas sessões mais longas de sete ou oito horas. Quando a pandemia terminou, resolvemos abrir espaço para alguns amigos participarem da experiência. Afinal, parte da intenção de se jogar é a interação, a sociabilização e os laços que se formam entre jogadores. Terminamos Curse of Strahd na 35º sessão, com um grupo de oito pessoas ao total, sem contar meu posto de DM [7]. Alguns meses depois, começamos uma nova campanha, usando os módulos clássicos de Dragonlance.

Durante a pandemia, conforme as sessões foram acontecendo, percebi que o velho hobby me confortava imensamente, aliviando minha condição mental. Se você já jogou alguma vez, sabe que a experiência do jogo em si, a “sessão de jogo”, é um momento no qual você pode esquecer todos os problemas e por algumas horas, sair desse mundo hostil e complicado, adentrando a uma realidade atraente e cheia de curiosidades que entretém, educa e edifica. Viver personagens fantásticos criados por sua imaginação, interpretar um outro alguém numa realidade de fantasia, construir sua história e viver uma “nova” vida, são ações que te transportam daqui, para um lugar melhor, e logo, daí a ação terapêutica. Mas, além disso, o convívio com o grupo que realiza as sessões de jogo pode gerar laços sociais que são mais fortes nesse contexto, afinal, as pessoas desse grupo têm geralmente muito em comum. Portanto, juntamente com a própria experiência do jogo, aliada a sociabilização, temos uma grande higiene e manutenção mental.

Notei que a atividade de jogar também me afetava fora das sessões, no meu dia a dia. Era óbvio que o trabalho de Dungeon Master se tornou uma válvula de escape ainda mais eficiente, e por esse motivo, viria a perdurar durante toda a pandemia e até mesmo após o afrouxamento do isolamento. Pensar em como seriam as sessões, preparar todo o material necessário, são tarefas que demandam dedicação e muito tempo, mas que são no final das contas, uma verdadeira terapia. É necessário planejar e revisar com antecedência as sessões, centenas de coisas que garantam o funcionamento adequado do jogo e para isso, você é obrigado a tirar sua mente dos problemas. Todos os dias, você é obrigado a organizar e se preparar para a sessão, mantendo um hábito de estar em contato com o mundo do AD&D, com sua lógica mágica, sua fauna, flora, história, acontecimentos e tudo aquilo que envolve abandonar a dura realidade e adentrar uma outra, incrivelmente rica e divertida.

É necessário ler a aventura, pesquisar e resumir a história, mapas para analisar e entender, fichas de NPC´s e monstros para ler. Apenas o material que explica o mundo de jogo, seus personagens e funcionalidade social, é rico o bastante para meses de “estudo”. Como se não bastasse o material de leitura do mundo e da aventura a ser jogada, há o básico que sempre é revisado: recapitular as regras de sistema, pesquisar e entender melhor todas as regras que você tem algum tipo de dúvida ou as regras opcionais, e se você quiser, isso é só o começo. Caso você queira jogar com miniaturas [8], há muito mais a ser feito. Escolher os arquivos, baixar, arrumar os suportes no software adequado, imprimir, lavar as peças com álcool pra finalmente, num dia sem toda a correria usual, poder pintá-las. Há muito o que se fazer no hobby, há ainda as atividades “complementares”: como encontrar livros antigos que você ainda não tem, que por si só já é uma ocupação a parte, busca de material de apoio, como dados, contadores, battle matts, props e muitos outros.

O hobby promove o desvio de foco dos problemas diários e também da ruminação desses problemas, aliviando a tensão e diminuindo a ansiedade: ao invés de remoer os problemas o dia todo, passa-se a dividir o tempo para cumprir as metas necessárias para as sessões de jogo. A mente entra num outro “modo” ou “espaço” para que isso aconteça. Ao adentrar esse espaço de preparação criativa, constrói-se uma espécie de reduto seguro, um espaço que lhe faz bem, o qual lhe é sempre convidativo e absolutamente familiar. A visitação diária a esse espaço, torna-se uma atividade necessária e absolutamente benéfica.

Jogar AD&D não curou minha depressão ou minhas questões com a ansiedade: ninguém deve esperar que isso de fato aconteça. Mas, eu sei que sem o AD&D, no mínimo tudo teria sido muito mais difícil de suportar. O hobby, aliado à psicanálise, aos exercícios de mindfullness e também ao exercício físico formam um conjunto que se tornou meu tratamento. Entretanto, considero hoje, que o hábito de jogar AD&D é dentre essas ferramentas, a mais importante. É claro que a psicanálise e a atividade física são eficientes e importantes, mas é na ação de pensar, planejar e organizar as sessões que encontrei uma ferramenta a qual anseio e desejo praticar o tempo todo, esse desejo, que se instala facilmente, quase nunca é sentido pelas outras ferramentas. Por isso, eu acredito que, como diz a chamada da matéria americana, sim: o AD&D salvou a minha vida, e acredito que ele pode fazer isso por mais pessoas.

Se você está pensando em começar a jogar, ou se já é um jogador veterano, ou mesmo um DM, não adie mais seu início no hobby, ou sua volta. Reúna sua família e amigos, tire a poeira dos seus livros e volte a jogar. Os benefícios de se jogar D&D são inúmeros e podem ajudar não somente a você, mas a todos os envolvidos.


1. RPG: Sigla norte-americana para Role Playing Game, jogo de interpretação de personagens.
2. D&D: Sigla norte-americana do RPG Dungeons & Dragons. Criado por Gary Gygax e Dave Arneson em 1974.
3. AD&D 2nd Edition: Segunda edição do jogo Advanced Dungeons & Dragons, lançado nos EUA em 1989.
4. Wizards of the Coast: editora norte-americana que comprou a TSR e agora publica a nova versão do jogo D&D.
5. Strahd von Zarovich: Vampiro lorde do mundo conhecido como Barovia, publicado nos anos 80, é uma das aventuras mais clássicas de AD&D 1st e 2nd Edition. Recebeu uma atualização recente com o novo livro Curse of Strahd, da WotC.
6. TSR [Tactital Studies Rules]: Editora original do jogo D&D e AD&D, norte-americana, fundada no Wisconsin. Ela faliu nos anos 90 e foi engolida pela empresa de card game WotC.
7. DM: O Dungeon Master [Mestre da Masmorra, Mestre de Jogo, etc] é o participante que controla a história e a sessão de jogo, é ele que prepara a aventura e geralmente fica encarregado de preparar “tudo” e ainda de reunir o grupo. Normalmente, ele é a “cola” do grupo.
8. Miniaturas: O jogo pode ser jogado sem miniaturas, usando somente a imaginação, mas também é possível fazer uso de miniaturas que representam os personagens da história para melhorar a “imersão” e também para marcar a posição dos personagens em situações nas quais é necessário maior clareza de onde cada um está. Isto foi herdado das mesas de War Games, e é extremamente importante para jogadores que apreciam um modo de jogo mais “estratégico”.

∞ M. A. ∞

1. https://www.facebook.com/groups/673083978447639/posts/694014489687921/ *

*Este link é da comunidade AD&D 2nd Edition Brasil.

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