(Publicação, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em maio de 2025)
Não vou entrar nos pormenores da minha condição. Basta dizer que tenho lutado contra um forte sentimento de luto, aliado a outras questões pessoais que me levaram a um quadro de depressão profunda, posteriormente desenvolvendo também ataques de pânico, ansiedade e alienação. Essa condição aparentemente foi agravada na pandemia. Nesse período, senti vontade de reler alguns livros de RPG que não via a tempos e acabei desenterrando da minha estante meu material de AD&D 2nd Edition [3] usados quando comecei a jogar em 1989. Após apreciar a leitura dos meus livros antigos que estavam guardados, fui além e decidi ler a então recém-lançada aventura Curse of Strahd: estava curioso para entender o que é que a equipe da WotC [4] fizera com a história clássica de Strahd [5], jogada e estimada por mim durante seus releases originais nos tempos da TSR [6]. Eu não tinha ideia de que a leitura da aventura abriria uma caixa de pandora. Foi então que a ideia me veio, após alguns dias lendo o novo módulo: como a clausura ainda levaria um tempo para acabar, esse poderia ser um momento perfeito para voltar a jogar, agregando a família, no contexto da pandemia, esposa e filho, únicos que poderiam participar das sessões já que estávamos em reclusão sanitária. Portanto, abracei a missão de converter a aventura para que pudesse ser jogada usando o sistema 2nd Edition.
Nunca considerei usar a 5th Edition como sistema. Sempre soubera que quando voltasse a jogar, continuaria fazendo uso de meus livros de AD&D, acredito que por vários motivos, importantes para um velho grognard como eu, de serem esclarecidos aqui. Em primeiro lugar, o óbvio: fazer uso dos livros que eu já tinha, eliminaria a necessidade de investir em novos livros, economizando dinheiro e sobretudo tempo. Mas outros dois fatores foram mais determinantes. A familiaridade com o sistema foi o primeiro fator decisivo: usando meus livros antigos, não era necessário ler e memorizar nada, as regras foram lidas e relidas anos atrás e já estavam memorizadas. Essas regras, discutidas e usadas em centenas de sessões, com diferentes grupos de pessoas, possuíam memórias de suas aplicações e conexões com velhas histórias de uma época e de inúmeros contextos, portanto, remetem qualquer jogador veterano um sentimento de conforto, de algo que lhe é agradavelmente familiar. Nós literalmente “crescemos” usando essas regras e aos meus olhos, elas funcionavam muito bem. Por que trocar algo que era perfeito?
A questão mais decisiva fora sem sombra de dúvida, a nostalgia. Voltar a jogar AD&D significava poder reviver uma experiência vivida anteriormente. Uma experiência que remetia a uma época marcada pela adolescência, pelo descobrimento de responsabilidades, de amadurecimento, mas também da liberdade de descobrir o mundo, da descoberta de uma vida social com um grupo de pessoas de interesses comum e na consolidação de um hábito que edificava. Jogar D&D, na minha geração, nos fez aprender muita coisa. Começando pela barreira da língua, foi necessário aprender a ler inglês, necessário adquirir uma disciplina de leitura, aprender a perder a vergonha de interpretar, gerenciamento de regras num grupo e a memorizá-las, defender argumentos, negociar, trabalhar em grupo e todo tipo de atividade intelectual e social que nos transformava em seres humanos melhores. O D&D nos moldou, e eu ainda sinto que esse hobby continua me ensinando e me tornando melhor. Portanto, usar o sistema de 2nd Edition, amplamente vivenciado numa época que marcara o “início” da fase adulta, é uma viagem no tempo, onde memórias afetivas de centenas de histórias afloram a todo momento. Reviver e fazer uso do AD&D, traria de volta os “anos dourados” vividos durante a boa e velha TSR.
Adaptada a aventura e revisado o sistema com a releitura dos livros básicos, Player´s Handbook e DM Guide, montamos os personagens e começamos a jogar usando algumas miniaturas e os auxiliares de jogo que eu já possuía a muitos anos. Fizemos durante a pandemia, pelo menos 25 sessões de jogo, com média de cinco a seis horas cada, com algumas sessões mais longas de sete ou oito horas. Quando a pandemia terminou, resolvemos abrir espaço para alguns amigos participarem da experiência. Afinal, parte da intenção de se jogar é a interação, a sociabilização e os laços que se formam entre jogadores. Terminamos Curse of Strahd na 35º sessão, com um grupo de oito pessoas ao total, sem contar meu posto de DM [7]. Alguns meses depois, começamos uma nova campanha, usando os módulos clássicos de Dragonlance.
Durante a pandemia, conforme as sessões foram acontecendo, percebi que o velho hobby me confortava imensamente, aliviando minha condição mental. Se você já jogou alguma vez, sabe que a experiência do jogo em si, a “sessão de jogo”, é um momento no qual você pode esquecer todos os problemas e por algumas horas, sair desse mundo hostil e complicado, adentrando a uma realidade atraente e cheia de curiosidades que entretém, educa e edifica. Viver personagens fantásticos criados por sua imaginação, interpretar um outro alguém numa realidade de fantasia, construir sua história e viver uma “nova” vida, são ações que te transportam daqui, para um lugar melhor, e logo, daí a ação terapêutica. Mas, além disso, o convívio com o grupo que realiza as sessões de jogo pode gerar laços sociais que são mais fortes nesse contexto, afinal, as pessoas desse grupo têm geralmente muito em comum. Portanto, juntamente com a própria experiência do jogo, aliada a sociabilização, temos uma grande higiene e manutenção mental.
Notei que a atividade de jogar também me afetava fora das sessões, no meu dia a dia. Era óbvio que o trabalho de Dungeon Master se tornou uma válvula de escape ainda mais eficiente, e por esse motivo, viria a perdurar durante toda a pandemia e até mesmo após o afrouxamento do isolamento. Pensar em como seriam as sessões, preparar todo o material necessário, são tarefas que demandam dedicação e muito tempo, mas que são no final das contas, uma verdadeira terapia. É necessário planejar e revisar com antecedência as sessões, centenas de coisas que garantam o funcionamento adequado do jogo e para isso, você é obrigado a tirar sua mente dos problemas. Todos os dias, você é obrigado a organizar e se preparar para a sessão, mantendo um hábito de estar em contato com o mundo do AD&D, com sua lógica mágica, sua fauna, flora, história, acontecimentos e tudo aquilo que envolve abandonar a dura realidade e adentrar uma outra, incrivelmente rica e divertida.
É necessário ler a aventura, pesquisar e resumir a história, mapas para analisar e entender, fichas de NPC´s e monstros para ler. Apenas o material que explica o mundo de jogo, seus personagens e funcionalidade social, é rico o bastante para meses de “estudo”. Como se não bastasse o material de leitura do mundo e da aventura a ser jogada, há o básico que sempre é revisado: recapitular as regras de sistema, pesquisar e entender melhor todas as regras que você tem algum tipo de dúvida ou as regras opcionais, e se você quiser, isso é só o começo. Caso você queira jogar com miniaturas [8], há muito mais a ser feito. Escolher os arquivos, baixar, arrumar os suportes no software adequado, imprimir, lavar as peças com álcool pra finalmente, num dia sem toda a correria usual, poder pintá-las. Há muito o que se fazer no hobby, há ainda as atividades “complementares”: como encontrar livros antigos que você ainda não tem, que por si só já é uma ocupação a parte, busca de material de apoio, como dados, contadores, battle matts, props e muitos outros.
O hobby promove o desvio de foco dos problemas diários e também da ruminação desses problemas, aliviando a tensão e diminuindo a ansiedade: ao invés de remoer os problemas o dia todo, passa-se a dividir o tempo para cumprir as metas necessárias para as sessões de jogo. A mente entra num outro “modo” ou “espaço” para que isso aconteça. Ao adentrar esse espaço de preparação criativa, constrói-se uma espécie de reduto seguro, um espaço que lhe faz bem, o qual lhe é sempre convidativo e absolutamente familiar. A visitação diária a esse espaço, torna-se uma atividade necessária e absolutamente benéfica.
Jogar AD&D não curou minha depressão ou minhas questões com a ansiedade: ninguém deve esperar que isso de fato aconteça. Mas, eu sei que sem o AD&D, no mínimo tudo teria sido muito mais difícil de suportar. O hobby, aliado à psicanálise, aos exercícios de mindfullness e também ao exercício físico formam um conjunto que se tornou meu tratamento. Entretanto, considero hoje, que o hábito de jogar AD&D é dentre essas ferramentas, a mais importante. É claro que a psicanálise e a atividade física são eficientes e importantes, mas é na ação de pensar, planejar e organizar as sessões que encontrei uma ferramenta a qual anseio e desejo praticar o tempo todo, esse desejo, que se instala facilmente, quase nunca é sentido pelas outras ferramentas. Por isso, eu acredito que, como diz a chamada da matéria americana, sim: o AD&D salvou a minha vida, e acredito que ele pode fazer isso por mais pessoas.
Se você está pensando em começar a jogar, ou se já é um jogador veterano, ou mesmo um DM, não adie mais seu início no hobby, ou sua volta. Reúna sua família e amigos, tire a poeira dos seus livros e volte a jogar. Os benefícios de se jogar D&D são inúmeros e podem ajudar não somente a você, mas a todos os envolvidos.
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1. RPG: Sigla norte-americana para Role Playing Game, jogo de interpretação de personagens.
2. D&D: Sigla norte-americana do RPG Dungeons & Dragons. Criado por Gary Gygax e Dave Arneson em 1974.
3. AD&D 2nd Edition: Segunda edição do jogo Advanced Dungeons & Dragons, lançado nos EUA em 1989.
4. Wizards of the Coast: editora norte-americana que comprou a TSR e agora publica a nova versão do jogo D&D.
5. Strahd von Zarovich: Vampiro lorde do mundo conhecido como Barovia, publicado nos anos 80, é uma das aventuras mais clássicas de AD&D 1st e 2nd Edition. Recebeu uma atualização recente com o novo livro Curse of Strahd, da WotC.
6. TSR [Tactital Studies Rules]: Editora original do jogo D&D e AD&D, norte-americana, fundada no Wisconsin. Ela faliu nos anos 90 e foi engolida pela empresa de card game WotC.
7. DM: O Dungeon Master [Mestre da Masmorra, Mestre de Jogo, etc] é o participante que controla a história e a sessão de jogo, é ele que prepara a aventura e geralmente fica encarregado de preparar “tudo” e ainda de reunir o grupo. Normalmente, ele é a “cola” do grupo.
8. Miniaturas: O jogo pode ser jogado sem miniaturas, usando somente a imaginação, mas também é possível fazer uso de miniaturas que representam os personagens da história para melhorar a “imersão” e também para marcar a posição dos personagens em situações nas quais é necessário maior clareza de onde cada um está. Isto foi herdado das mesas de War Games, e é extremamente importante para jogadores que apreciam um modo de jogo mais “estratégico”.
∞ M. A. ∞
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1. https://www.facebook.com/groups/673083978447639/posts/694014489687921/ *
*Este link é da comunidade AD&D 2nd Edition Brasil.
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