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segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Estabelecendo a Campanha {THL2}

(Tradução, com permissão do autor, do texto presente no suplemento para a primeira edição de AD&D, The Heroic Legendarium [1], publicado por Trent Smith em 2021. Agradecemos imensamente a gentil cortesia do autor)

"Algumas observações sobre o início de uma campanha em mundo aberto..."

Em 1979, Gary Gygax deu alguns conselhos muito bons sobre como configurar sua campanha: comece pequeno, com uma única vila ou cidade, uma área externa ao redor e uma masmorra próxima. Deixe que as coisas cresçam naturalmente a partir daí, preenchendo detalhes e expandindo o escopo conforme necessário, permitindo que os interesses e realizações dos jogadores orientem esse desenvolvimento em vez de impor tudo de cima para baixo. Tudo isso ainda se mantém verdade até hoje, e nada do que direi aqui contradiz esses princípios. No entanto, algumas sugestões adicionais podem ser acrescentadas a essa estrutura para tornar o processo um pouco mais claro e garantir que o resultado seja propício para diversão e jogos duradouros, com amplo espaço para crescimento e desenvolvimento, em vez de limitar as opções logo no começo.

Primeiramente, ao criar sua área de jogo inicial, inclua várias possibilidades de aventura para que, desde o início, os jogadores tenham opções e percebam que estão no controle da narrativa e que suas escolhas importam; que eles não precisam esperar que oportunidades sejam entregues de bandeja nem tentar adivinhar o que se espera que façam. Seu mapa externo deve incluir vários locais potenciais de aventura — cavernas, ruínas, covis — sobre os quais os jogadores podem ouvir na cidade e buscar deliberadamente, ou que podem simplesmente encontrar durante suas explorações. Mesmo que você tenha planejado uma única grande masmorra esperando que seja a escolha óbvia para os jogadores explorarem, você também precisa planejar e aceitar a possibilidade de que eles possam não querer ir até lá, pelo menos não de imediato. Talvez eles estejam cautelosos e com medo, e pensem que não conseguirão lidar com os desafios, então estejam procurando algo em menor escala ou mais fácil — o que, na verdade, é um sinal de jogo estratégico, pois, parte de criar um cenário de campanha superior é que existam desafios no mundo que sejam difíceis demais para personagens iniciantes, e que, mesmo que estejam interessados, precisarão desenvolver e aumentar seu nível de poder antes de enfrentá-los. Aprender a reconhecer isso e reagir apropriadamente — sem presumir que tudo no mundo foi ajustado para suas capacidades — é um passo importante de desenvolvimento. Talvez eles achem que é uma armadilha — que é óbvio demais e se mostram cautelosos por esse motivo. Talvez prefiram ficar ao ar livre, onde há mais liberdade de movimento (inclusive para fugir). Ou talvez estejam apenas testando sua autonomia, só para ver até onde podem ir. Qualquer uma dessas opções é válida, e você não deve forçar os jogadores a seguirem seu gancho de aventura favorito se ele não os atraiu naturalmente.

Outro motivo para incluir várias possibilidades de aventura na configuração inicial é que ao menos parte desse trabalho criativo provavelmente será feito antes de você saber quem serão os personagens que irão explorar esse mundo. É necessário permitir uma variedade de tipos de personagens. Você pode querer definir alguns limites para as classes e/ou alinhamentos permitidos (banindo as chamadas raças do “subterrâneo” e/ou alinhamentos malignos — pelo menos o caótico e maligno —, o que é comum) e pode querer designar, em vez de rolar aleatoriamente, a classe social dos personagens. Fora isso, os jogadores devem ter liberdade para criar personagens como desejarem dentro desses parâmetros (e conforme permitido pelos atributos rolados). Um grupo marcado por tipos ladinos neutros ou malignos buscará aventuras diferentes de um grupo dominado por cavaleiros bons, e a configuração de sua campanha deve ser capaz de acomodar ambos. Uma “sessão zero” para a criação de personagens e configuração inicial antes da primeira aventura propriamente dita, incluindo todo o grupo ou individualmente com cada jogador, pode ajudá-lo a adaptar melhor a primeira aventura aos personagens específicos que irão participar dela, bem como a ter uma noção melhor do que cada jogador espera e deseja do jogo. Porém, tenha cuidado para não gastar muito tempo com os preparativos antes de entrar em ação, especialmente se for difícil agendar sessões. Se a primeira sessão for apenas de contexto e preparação, sem nenhuma ação para prender os jogadores e envolvê-los no jogo, pode muito bem nunca haver uma segunda sessão.

Nada disso significa que qualquer ideia ignorada pelos jogadores deva ser descartada ou reaproveitada em outra aventura. Ao contrário, tudo o que você cria e coloca no mundo da campanha deve permanecer lá, continuando a crescer e se desenvolver por conta própria até que alguém (possivelmente os PCs [n.t., player character = personagem do jogador] mas também algum grupo de NPCs [n.t., non player character = personagem não jogador, ou personagem do Mestre, PdM]) intervenha. Uma vez que o jogo na campanha começa e os jogadores tomam decisões e agem, o tempo começa a fluir e o resto do mundo começa a se mover por conta própria. Se você inicialmente definiu quatro possíveis aventuras e os jogadores seguiram duas, mas ignoraram as outras duas, esses locais não ficam em estase esperando que os jogadores eventualmente os notem. Eles continuarão a crescer e se desenvolver (os monstros se tornando mais numerosos e poderosos, melhor organizados e mais ameaçadores à civilização), ou a situação será resolvida por algum NPC que ganhará o tesouro e a reputação que poderiam ter sido dos PCs, possivelmente estabelecendo-se como rivais ou inimigos futuros. A sensação de que o mundo existe independente dos PCs — que tanto suas ações quanto inações têm consequências e que eventos estão ocorrendo independentemente de sua participação, e que os NPCs têm suas próprias motivações e objetivos que perseguem fora do palco — é muito importante de ser estabelecido desde o início, dentro do contexto da área inicial limitada, e de ser mantido ao longo da campanha à medida que o escopo se expande e o elenco de NPCs inclua não apenas figuras locais, mas reis e imperadores, e até deuses, demônios e diabos.

Além de estabelecer NPCs e organizações de NPCs (guildas, igrejas, gangues, ordens de cavaleiros, companhias mercenárias, etc.) que interajam com os PCs (como patronos, aliados, rivais ou inimigos) e também persigam seus próprios objetivos, outra maneira de construir e manter uma atmosfera de “mundo vivo” é configurar tabelas para tráfego (chegadas e partidas da cidade-base) e eventos mundanos — diferentes das tabelas de encontros aleatórios regulares, com pouca expectativa de resultar em combate, mas com potencial para adicionar cor de fundo incidental, tornando o local mais ativo e real. Por exemplo, aqui está uma tabela de eventos locais, criada para uma vila agrícola em uma encruzilhada de duas rotas comerciais na fronteira da civilização, geralmente pacífica, mas com uma ameaça crescente de bandidos e humanoides saqueadores; em outras palavras, um local perfeito para aventureiros iniciantes:

Rolar (d%) diariamente:

01-80) Evento sem importância.

81-83) Boa notícia: alguém está anunciando um nascimento (1-2), casamento (3-5) ou outro evento igualmente afortunado (6). Uma rodada de bebidas grátis para todos na Estalagem!

84-86) Celebração: há uma festa em honra a um nascimento, casamento, aniversário, construção de celeiro, evento religioso ou qualquer outro motivo.

87-89) Chegada inesperada: ou rolada na Tabela de Tráfego (o que pode resultar em duas chegadas no mesmo dia) ou algum outro visitante diverso (ex.: parentes visitando alguém na cidade, um mensageiro com notícias, um forasteiro misterioso, etc.).

90-91) Acidente: um incêndio (1-2) ou outra lesão significativa (3-6) atinge alguém na cidade (1-2) ou em uma fazenda nos arredores (3-6).

92-93) Surto: doença contagiosa afetou de 1 a 3 lares na cidade (1-4) ou nas fazendas vizinhas (5-6).

94) Briga na Estalagem: autoexplicativo.

95-97) Mudança dramática no clima: aumento súbito (1-2) ou queda (3-4) de temperatura, ou precipitação intensa e repentina (5-6).

98) Criatura à solta: uma matilha de cães selvagens (1-6), um cavalo fugitivo (7-9), algo vindo dos pântanos (cobra, lagarto, etc.) (10-11) ou um monstro rolado da tabela de Encontros na Natureza (12) está à solta na cidade.

99) Ataque: uma fazenda nos arredores (1-2) ou grupo de viajantes (3-6) foi atacado por bandidos (1-3), humanoides (4-5) ou um monstro (6).

00) Ocorrência estranha e portentosa: chuva de meteoros, lua de sangue, eclipse solar, nascimento de um bezerro com duas cabeças, enxame de gafanhotos, terremoto, etc. (cada evento desses deve ocorrer apenas uma vez).

Além das rolagens diárias ou semanais nessa tabela, você também pode incluir viajantes que trazem notícias de terras distantes e determinar eventos em maior escala em intervalos mensais, sazonais ou anuais. A princípio, essas notícias provavelmente se referem a áreas que você ainda não detalhou, mas, quando chegar o momento de voltar sua atenção a esses locais, você já saberá algo sobre eles — que tal reino está em guerra, sofreu com uma recente fome ou enchente, ou teve um nascimento ou morte na família governante; outro pode estar caindo sob a influência de um movimento religioso carismático, e assim por diante. Esses detalhes preliminares podem servir de inspiração, uma base para novas tramas e possíveis aventuras, à medida que você preenche as lacunas e expande essas informações iniciais. Tudo parecerá mais real e natural para os jogadores, pois, esses eventos não surgirão do nada — eles já terão ouvido falar dessas histórias meses ou até anos antes.

Uma das vantagens de estabelecer um ambiente de “mundo vivo” como esse é que ele lhe permite criar situações para que os jogadores explorem e se envolvam conforme desejarem, em vez de histórias com uma sequência de eventos fixa e um desfecho predeterminado, o que é inadequado para uma campanha multijogador de mundo aberto onde é crucial que todos os participantes tenham agência sobre o que acontece e sobre como seus personagens e o mundo ao redor se desenvolvem. Como disse Gary Gygax em 1979, uma vez que o Mestre de Jogo coloca a campanha em movimento, os jogadores e seus interesses se tornam os principais motivadores da ação e linha de desenvolvimeto, e, idealmente, o Mestre seguirá suas direções. A campanha começará a ganhar vida própria, sendo maior do que a soma de suas partes, e o Mestre de Jogo atuará menos como contador de histórias e mais como registrador de eventos que ele nunca poderia ter previsto.

∞ Trent Smih ∞
∴ 

1. https://www.drivethrurpg.com/en/product/357539/the-heroic-legendarium-a-first-edition-adventure-gaming-companion

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