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domingo, 27 de outubro de 2024

A Masmorra Excessivamente Temática

(Tradução, com permissão do autor, do texto presente em [1], publicado em fevereiro de 2017)

"Um mago fez isso..."
A sabedoria comum sobre o design de encontros em masmorras mudou muito ao longo dos anos, mas a questão do que torna um encontro bom, ou uma boa mistura de salas, nunca foi totalmente respondida.

A abordagem original, desenvolvida nos primórdios dos jogos (e vista em artefatos desgastados como o El Raja Key Archives [2] ou o First Fantasy Campaign), enfatizava o aspecto de jogo, com uma entrada breve e níveis de masmorra preenchidos de forma muito esparsa. Passava-se grande parte do tempo de exploração procurando os covis bem escondidos e aqueles encontros “especiais” memoráveis e – de nossa perspectiva atual – alguns desses jogos poderiam agora ser descritos como palavras-cruzadas em primeira pessoa.

Essa filosofia era bem relaxada quanto ao que se colocava na masmorra: qualquer coisa divertida e desafiadora, pouco importando aquelas questões irritantes sobre o porquê e o como. É assim que a Citadel of Fire tem uma taverna subterrânea em um de seus níveis superiores, como o Castle Amber tem uma floresta interna, como a Tower Chaos tem um elemental de terra chamado “Stoney” guardando a sala de porcelanas ao lado da cozinha e como a White Plume Mountain tem… Bem, aqueles caiaques são um bom começo. Pode-se racionalizar, mas a razão é um pensamento secundário – o que importa é o espírito de fantasia caprichosa. No melhor dos casos, essas aventuras são ótimas justamente porque tomam liberdades com o realismo e fazem isso bem. Sem uma imaginação vívida e a habilidade de transformar essa imaginação em mini-jogos, o resultado parece raso e jogado ao acaso (esse problema assombra grande parte do cenário inicial dos torneios, incluindo, em minha opinião herética, uma parte significativa de The Lost Caverns of Tsojcanth). Os melhores exemplos dessa abordagem sempre foram os módulos que apresentavam uma sensação de coesão – vaga, difícil de explicar, mas presente no pano de fundo.
 

"As consequência de uma péssima limpeza doméstica..."

Depois, temos a escola de realismo fantástico, expressa pela primeira vez de maneira abrangente em um antigo artigo da Dragon cuja referência exata eu não tenho paciência para procurar. [Editado: Identificado por Settembrini e atualizado com a ilustração correta.] Você conhece o artigo. Ele mostra uma sala de masmorra em dois estados: o modo original como era e o estado dilapidado, saqueado e reutilizado no qual o grupo a encontrará durante a expedição. Certamente, essa abordagem proporciona um senso de realismo, de “estar lá”, e é realmente mais intuitiva do que preencher suas masmorras com coisas aleatórias. Se sua masmorra era um templo, você a preenchia com encontros relacionados à religião; se era uma cripta, certamente não colocaria uma taverna subterrânea nela (e as tavernas subterrâneas meio que desapareceram da cena de jogos). Essa abordagem muitas vezes fornecia um plano completo para sua masmorra: se você colocou uma sacristia, pode também colocar uma cripta e um refeitório, que tal um campanário e alguns estábulos? Não é coincidência que essa abordagem, elogiada pela comunidade de design de jogos, acabou se tornando dominante por décadas, substituindo amplamente sua antecessora. (Foi, por sua vez, sucedida pelo modelo moderno de “retorno à masmorra”, uma leitura (equivocada?) seletiva da história dos jogos, que sugeria que os bons e velhos tempos eram todos sobre “matar coisas e pegar seus pertences”, enquanto silenciosamente deixava de lado o foco pesado na exploração que os jogos antigos realmente tinham).

Existem muitas vantagens no design de encontros semi-realista, mas ele também pode falhar de maneiras que seus defensores jamais consideraram. Do meu ponto de vista, a mais importante dessas falhas é o enfraquecimento de nosso senso de maravilha, seja por considerar o fantástico impossível e o interesse nisso juvenil – uma noção particularmente popular na Hungria, e, pelo que ouvi, na Alemanha – ou pela exigência de racionalizar o irracional. Isso tem um efeito corrosivo em qualquer tipo de jogo de fantasia, mas é particularmente prejudicial para D&D. Uma masmorra de “conteúdo de armário”, com corredores intermináveis de quartéis com pedaços de corda e botas velhas mofadas em uma sucessão de baús, ou a escola de pseudo-história do “aqui era um scriptorium, onde escribas escreviam seus escritos”, é muitas vezes uma receita para uma masmorra insatisfatória onde nada interessante acontece. Subordina-se a fantasia à realidade, quando o certo seria fazer exatamente o oposto. No final, fica a sensação de que essas masmorras não valem a pena. "Eu avisei", dizem aqueles que nunca gostaram de D&D desde o início.

"Crânios. Por que tinha que ter crânios?"

Redescobrir o lado fantástico dos RPGs é uma conquista importante do estilo clássico de jogos. E não há razão para não aprendermos com diversas filosofias de design, aproveitando o melhor que cada uma tem a oferecer. Meu equilíbrio preferido tem sido buscar a adequação temática, uma abordagem encontrada com frequência nos escritos de Bob Bledsaw. A adequação temática relaciona os encontros a um tema geral (seja uma cripta, um oásis desértico ou uma metrópole de fantasia fervilhante), mas opera com base em associações livres em vez de uma lógica rígida e sequencial.

Quando você diz “porto”, ele responde “velho mendigo vende conchas musicais com mensagens secretas, 1:6 de chance de conter um ear seeker [n.t., um monstro]”. Quando você diz “prisão”, ele sugere “Bluto e Balfour, dois ogros (PV 17, 23) aplicam surras regulares e servem aos prisioneiros uma Gororoba de Algas; os presos são Refren, pirata musical, Harko Fum, mendigo do 4º círculo, Mythor Flax, último portador do vergonhoso segredo da Princesa Yarsilda”. Há conexões óbvias com um tema básico, mas também saltos lógicos expressivos – de alguma forma, saímos de um porto para um era seeker, e de uma prisão para uma princesa e seu segredo, embora isso não siga imediatamente nem necessariamente do ponto de partida. É preciso confiar em sua capacidade de saltar para conseguir – é preciso soltar-se um pouco. É assim que os sonhos conectam coisas em nossas mentes e como o tipo certo de tabelas aleatórias pode estimular nossa imaginação: criando justaposições estranhas e fantásticas que, no entanto, parecem reais enquanto não abrimos os olhos demais.

Essa foi a conclusão a que cheguei há pouco mais de dez anos. E, ainda que tenha sido bem servido por essa abordagem em diversas campanhas, estou percebendo que ela deveria ter vindo com uma advertência importante: use seus temas, mas não se prenda a eles. Recentemente, aprendi isso da forma difícil ao enfrentar um bloqueio criativo ao criar encontros para o Castle Xyntillan [3]. Embora projetar cerca de três quartos do castelo tenha sido relativamente simples, o quarto restante (e o nível da masmorra) se mostrou um desafio complicado. Encontrei-me num estado excessivamente analítico, cínico demais para manter o bom fluxo – eu poderia talvez continuar por pura força de vontade, mas o resultado inevitavelmente me decepcionaria. O que deu errado? Um simples bloqueio criativo teria sido uma desculpa conveniente, mas, após uma pequena autoanálise, cheguei à conclusão de que permiti que uma visão coerente de Xyntillan sobrepujasse minha ideia dele como uma masmorra divertida e de estrutura solta, com elementos improváveis. As estruturas e ideias existentes de Xyntillan estavam limitando a variedade de ideias que considerei no início. Meu processo de pensamento tornou-se dependente do caminho, previsível. No final das contas, eu precisava de uma pausa – não apenas para me refrescar, mas para esquecer e permitir-me vagar novamente em direções inesperadas. Xyntillan precisava ser menos temático para manter seu tema.

Isso prova mais uma vez: há um ponto em que a teoria termina e os reinos nebulosos da imaginação começam; e nesses mundos, frequentemente precisamos caminhar sozinhos.

Gabor Lux

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